MUITO PRAZER

Agradeço sua visita em meu blog e desejo que lhe seja útil. Se precisar de algum tipo de orientação acadêmica, estou à disposição na Faculdade de Cmunicação Social da PUCRS/Porto Alegre.

Monday, July 11, 2005

Considerações sobre o colunismo no Brasil

A COLUNA[1]

A coluna é uma espécie de área privativa com regulamento próprio onde se misturam em intimidade, sobre assuntos gerais ou temas específicos, notícia e comentário, entrevista e interpretação, humorismo e gravidade, tudo em textos curtos, em forma de pílulas, e com certa liberdade de expressão. É o dado que faltou ao grande noticiário, o lado pitoresco do acontecimento, o detalhe curioso de uma decisão.
A idéia de delimitar a coluna e dar-lhe essa característica surgiu simultaneamente no fim do século 19, nos Estados Unidos, com Eugene Field, no Daily News, de Chicago, e Ambrose Bierce, no Examiner, de São Francisco, como reação ao rigor na separação e emprego da notícia e do comentário, e à camisa de força dos editoriais. O colunismo, como ficou conhecido, teve aceitação imediata na imprensa brasileira.
A sua receptividade entre os brasileiros também foi favorecida pelo cansaço dos leitores com os longos comentários, e não só pó isso como pelo toque de humor e malícia que muitos profissionais souberam dar à redação dos pequenos textos. Hermano Alves (colunista) disse que “nada melhor do que uma pitada de malícia para dar sabor a uma coluna”.
Paradoxalmente, o êxito de uma coluna concorre, não raro, entre nós, para sua desfiguração. Local de fácil comunicação transforma-se em abridora de caminhos ou salão de sondagem de determinados grupos. Em outros momentos, é a vala comum de notícias menores de interesse da direção da empresa, de suas relações, das agências de relações públicas e publicidade, e dos amigos do colunista. A constância das pessoas acaba, às vezes, por triunfar sobre a ética profissional e, entre duas notícias qualificadas, o leitor é obrigado a consumir a promoção de um cliente importante do jornal.
O colunista disputa com o repórter o prazer da notícia em primeira mão, com o redator a capacidade de dizer o máximo com o mínimo de palavras e com o comentarista a sutileza de espírito, a perspicácia e a finura. Tem que ser um jornalista experiente no trato da entrevista e com ampla possibilidade de circulação em todas as áreas.
O campo de ação do colunista são os grandes centros de decisão, os bastidores, as reuniões sociais, os acontecimentos mundanos. Muito material surgiu também da colaboração entre colegas da mesma ou de diferentes empresas.
O fato de reunir toda uma soma de poder em suas mãos e de comentar temas os mais variados, como um especialista polivalente, tem causado apreciações negativas ao colunista, como esta feita por uma autoridade norte-americana:
De todas as fantásticas figuras que se têm levantado do pântano da confusão, desde a Grande Guerra, a mais fútil e, ao mesmo tempo, a mais pretensiosa, é a do profundo pensador de cabelo empastado, o colunista ou comentarista que sabe todas as respostas de improviso e pode resolver grandes problemas com absoluta confiança, três e até seis dias da semana.

Mesmo John Hohenberg, que elogia alguns colunistas por sua capacidade de iluminar as notícias e trazer algum esclarecimento diz que “alguns são modestos, mas outros insuportavelmente arrogantes ao pretenderem modelar a opinião pública”.
Não é raro o colunista tornar-se mais importante do que o próprio jornal e por esse motivo um dos grandes matutinos do Rio de janeiro, o Correio da Manhã, hoje extinto, sempre se negou a introduzir qualquer coluna com as características que marcam este gênero no jornalismo.
Em que pesem, porém, as críticas feitas aos colunistas, o fato é que a coluna vive uma fase de prestígio graças ao volume de informação que fornece à leveza e ao tamanho reduzido dos textos.

[1] Texto de Luiz Amaral, em “Jornalismo, matéria de primeira página”, ed. Tempo Brasileiro, 1986.

Friday, July 08, 2005

A liberdade de fazer

LE MONDE
Diplomatique

Exclusivo

Tendo interiorizado a lógica do capitalismo, a maior parte dos jornalistas adere alegremente às exigências do sistema. Age de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
Por Alain Accardo

Observador dos meios de comunicação deveria partir da premissa de que os jornalistas, em sua grande maioria, não estão maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro das empresas para as quais trabalham, em particular, e dos capitalistas, em geral. Se o jornalista age como “condicionador” daqueles a quem se dirige, não é pelo desejo de condiciona-los e sim por ser ele próprio condicionado, a um grau que ele, como a maioria na profissão, não percebe. Assim, cada jornalista, fazendo (ou não fazendo) espontaneamente o que quer, concorda espontaneamente com todos os demais. Pode-se dizer, com o poeta Robert Desnos, que obedecem à lógica do pelicano: “O pelicano bota um ovo bem branquinho/De onde sai, inevitavelmente/Um outro que faz tudo igualzinho”.
Os investidores e comerciantes que se apropriaram da parte essencial dos meios de comunicação não precisam ditar os jornalistas o que eles devem dizer ou mostrar. Não precisam violentar sua consciência, ou transforma-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais aceitaria tal coisa. Para garantir a melhor informação possível ao melhor dos mundos capitalistas, nada como deixar os jornalistas trabalharem livremente para ser mais exato, deixá-los acreditar que seu trabalho não obedece a nenhum outro imperativo, nenhum outro limite a não ser o das regras específicas do jogo aceito por todos. Deve-se confiar na “consciência profissional”. Assim, basta entregar as rédeas do poder nas relações aos homens e mulheres qualificados geralmente como “excelentes profissionais”, o que significa aqueles que nunca deixaram de compartilhar, explícita ou simplesmente, uma visão de mundo coincidente com a dos seus patrões. Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante um recrutamento de pessoal capaz de impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na kissa. Esse mecanismo começa a funcionar já nos cursos de jornalismo e prossegue, continuamente, nas redações.
Desse modo, os meios de comunicação estão seguramente amparados por uma rede na qual basta que cada um trabalhe “de acordo com seus sentimentos” para que trabalhe “como se deve”, ou seja, em defesa das normas e dos valores do modelo predominante. Assim se realiza o consenso entre uma direita em pane de idéias e uma esquerda que sofre da ruptura de um ideal.
No entanto, é preciso insistir no fato de que a eficácia de tal sistema repousa fundamentalmente na sinceridade e espontaneidade dos que nele investem, mesmo que esse investimento carregue uma certa dose de automistificação. Do jeito como é trabalhada, a informação jornalística é passível de muitas críticas e recriminações bem fundamentadas, entre elas a de limitar as idéias à problemática dominante, isto é, ao chamado pensamento único. Mas, se existe uma coisa que não se pode censurar nos jornalistas – salvo rara exceções – é a boa-fé com que realizam seu trabalho. Uma vez tendo assimilado perfeitamente a lógica do sistema, eles aceitam livremente aquilo em que são obrigados a acreditar. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.

NEM HIPOCRISIA NEM FALTA DE CARÁTER

Se tivéssemos de resumir em poucas palavras a crença fundamental dos jornalistas, diríamos que eles acreditam sinceramente em um capitalismo com face humana, e têm absoluta certeza de que nessa crença não há nada de ideológico. Como ocorre com os atores de todos os campos sociais, a visão dos jornalistas se caracteriza por uma mescla de doses variadas de lucidez e ceticismo, de visto e de não-visto ou intrevisto.

PROFISSIONAIS COOPTADOS, IDEOLOGICAMENTE CONFIÁVEIS, IMPEDEM A ENTRADA DE RAPOSAS NO GALINHEIRO OU DE HEREGES
NA MISSA.


Conseguem ver com clareza, por exemplo, os inúmeros exemplos de desumanidade do sistema capitalista pelo mundo afora, mas se recusam a enxergar nisso um traço inerente à essência mesma do capitalismo, interpretando tais exemplos como simples acidentes. Falam de “disfunções”, de “desvios”, de “excessos”, de “ovelhas negras”, condenáveis certamente mas de que modo algum comprometeriam o sistema que tendem a defender espontaneamente.
Assim, por exemplo, fazem uma crítica sincera de abomináveis “excessos” no tratamento da informação-mercadoria, excessos motivados pela concorrência, pela obrigação de rentabilidade, pelo índice de audiência, em suma, pela lógica do mercado. Mas o fato de essa mesma lógica provocar um aumento maciço de estagiários nas redações, com um contingente cada vez maior de jovens jornalistas sub-remunerados e descartáveis, vergonhosamente explorados por seus patrões, não os comove absolutamente.
O campo jornalístico, como muitos outros, funciona graças a algo que, objetivamente, deve ser chamado de impostura, no sentido de o jornalista só poder fazer o que faz, ou seja, contribuir para a manutenção da ordem simbólica, fazendo de conta que não o faz, como se não seguisse outro princípio que não o da utilidade pública e do bem comum, da verdade e da justiça. Hipocrisia ou mau-caratismo? Nem uma coisa nem outra. Nenhum sistema pode funcionar maciça e deliberadamente com base na impostura intencional e permanente. É necessário que as pessoas acreditem no que estão fazendo e que assumam uma ideologia socialmente aceita que não pode se resumir, no caso, a proclamar cinicamente “viva o reino do dinheiro, abaixo o humanismo arcaico, vamos ficar ricos e os pobres que se danem!”, mas que consiste em acreditar, na maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja liberal, fora da qual não há salvação possível.

DEUS E O DIABO

Muito felizmente para os donos do dinheiro, é dessa forma que podem povoar os meios de comunicação que compraram, com pessoas inteligentes, competentes e sinceras, pessoalmente condicionadas a transfigurar a lei da selva do capitalismo com aquilo que chamam de “modernidade” ou “democracia de mercado”.

Mas as conclusões válidas para os meios de comunicação valem também para segmentos inteiros da estrutura social. O microcosmo jornalístico e, nesse sentido, um espaço privilegiado para a observação in vivo do que ocorre nos campos da produção e da difusão de bens simbólicos, cujo corpo profissional pertence, na sua quase totalidade, à classe média (atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação etc.).
Foi a classe média – sobretudo a nova pequena burguesia, mas não apenas ela – que, investindo a fundo nesse sistema, injetou-lhe a dose de humanidade, inteligência, imaginação, tolerância, psicologia, em suma, o suplemento de alma necessário para que pudesse passar da exploração selvagem do “como se deve” trabalho assalariado – que grassava antes ainda da Segunda Guerra Mundial – a formas aparentemente mais civilizadas e compatíveis com o aumento das aspirações democráticas.
A esse respeito pode-se dizer que a modernização do capitalismo consistiu em desenvolver métodos de “gestão dos recursos humanos” e de comunicação para camuflar os abusos patronais por meio de eufemismos e envolver psicologicamente os assalariados na sua própria exploração. Sem dúvida, tamanha colaboração resulta em diversos ganhos materiais e morais, no primeiro caso a garantia da subsistência e no segundo a sensação de uma certa importância e utilidade para seus semelhantes. O que não é pouco.

AS CRÍTICAS AO SISTEMA ESTÃO LONGE DE POR EM RISCO A LÓGICA DOMINANTE; SUSTENTAM APENAS UM LOGORRÉICO DEBATE QUE QUASE NUNCA TOCA O ESSENCIAL.

Mas acontece que, por uma dessas artimanhas objetivas de que a história está cheia, o trabalho que essas pessoas executam traz lucros maiores ao sistema e às castas feudais que o dominam, de modo que, pensando servir a Deus, servem ao diabo. Mas fazem na melhor das intenções, com a consciência tranqüila, porque quase tudo que possa pesar na consciência é automaticamente autocensurado ou transfigurado. No íntimo, eles têm, como diria Pascal, “uma vontade de crer que supera suas razões para duvidar”. Provavelmente, isso acontece porque os jornalistas dominam profissionalmente as tecnologias do fazer-ver e do fazer-saber. Daí resulta que a visão de seu próprio meio de trabalho seja mais nítida que em outras categorias da classe média, cuja postura objetiva consiste em nunca ser nem nunca fazer por completo o que elas mesmas pensam que são e fazem, numa constante auto-encenação em que procuram aumentar sua importância.

A BUSCA DA AFIRMAÇÃO

Se é verdade que nenhum jogo social pode se desenvolver sem que os atores aceitem, em parte ou totalmente, “contar-se histórias”, iludir a si mesmos e aos outros, temos de admitir que a classe média têm uma tendência especial a “fazer teatro”. Essa propensão, antes de tudo nascisista, à dramatização de sua existência está ligada ao fato de pertencerem a um espaço social intermediário entre os dois pólos, o dominador e o dominado. Todos os traços característicos da pequena burguesia resultam dessa posição ambígua entre o insatisfatório e o abundante, entre o ser e o não ser, num mundo em que o valor social se tornou diretamente proporcional ao grau de acumulação do capital em geral, e do nível econômico em particular. “Os menos aquinhoados”, como se diz pudicamente, dispõem de pouquíssimo para se preocupar em valorizar o que têm e o que são. Os mais privilegiados, ao contrário, possuem bens demais para precisar se valorizar oferecendo-se como espetáculo. Na classe média, mais do que nas outras, existir socialmente significa ser notado.
Mas essa busca interminável de auto-afirmação raramente produz resultados totalmente satisfatórios. Os pequeno burgueses (em todas as suas funções), por sua posição intermediária, geralmente são mais sensíveis à distância das posições superiores que às vantagens intrínsecas da posição ocupada. Como já notava Stendhal, “a grande aspiração é ascender à classe superior à sua, que faz de tudo para impedir sua ascenção a ela”. Nisso reside uma fonte de grande frustração e ressentimento, uma espécie de lugar propício à patologia do reconhecimento social, origem primeira de inúmeros casos de sofrimento existencial que poderiam ser reunidos sob a denominação de “síndrome de Emma Bovary e de Julien Sorel”. Sofrimento que aumenta em vez de diminuir, por ser estruturalmente programado e, portanto, refratário a qualquer terapia. Uma pesquisa sobre o jornalismo de base fornece eloqüentes exemplos desse relacionamento ambíguo, que é ao mesmo tempo deslumbrado e exasperado, amoroso e despeitado, arrogante e doloroso, dos dominadores-dominados desse entremeio social.
Temos o direito de pensar que o único meio de remediar tal situação seria a decisão clara de participarmos ativamente de uma ação coletiva de natureza política e social que virasse romper com a lógica do sistema. Tarefa difícil, que exige colocar em questão o inconsciente social da situação, isto é, tudo que foi pessoalmente no mais fundo de nós mesmos, todos os elos profundos, todas as adesões carnais por meio das quais os indivíduos “aderem” a um sistema que os engendrou e condicionou a fazer, de livre e espontânea vontade e às vezes com infinita alegria, o que espera que eles façam. Por exemplo, enfrentarem-se impiedosamente numa competição implacável por objetivos ilusórios e risíveis, cuja perseguição e conquista, no final das contas, não provam nada, salvo precisamente que se está muitíssimo bem condicionado.
Até agora, os membros da classe média, por estarem condicionados não apenas pelos meios de comunicação mas por toda a sua socialização, trataram de cultivar, com perseverança, seu sonho de ascensão social e suas esperanças de vitória pessoal num universo cujas carências, contradições e iniqüidades eles próprios são chamados a denunciar. Mas essas opiniões críticas, por se restringirem ao registro político (muitas vezes politiqueiro), e o voto “à esquerda” a que costumam estar associadas, longe de pôr em risco a lógica dominante, têm o efeito de otimizar o funcionamento de um sistema que, além de se reproduzir no essencial, pode também se vangloriar de manter, nos meios de fato, quase nunca toca o essencial.

Alain Accardo é professor de sociologia da Universidade de Bordeaux-III, co-autor de Jornalistes Précaires, Lê Mascaret, Bordeaux, 1998.

Responsabilidade Social

Dinheiro público, ação privada
Proposta de vantagens fiscais para empresas que investem no social reacende o debate sobre os Papéis do Estado e da iniciativa privada na redução das desigualdades

Felipe Polydoro

Por décadas, as empresas foram vistas como insensíveis aos gra­ves problemas sociais do país. Essa no­ção mudou drasticamente nos últimos anos. Entre as grandes, são pou­quíssimas aquelas que ainda não fa­zem investimentos sociais. As peque­nas e médias não ficam muito atrás e já provaram que, nessa matéria, ta­manho não é documento. Se uma pro­posta que vem ganhando força entre os protagonistas do terceiro setor vin­gar, pode ser que a iniciativa privada se sinta ainda mais estimulada a des­tinar recursos para a comunidade.
Trata-se de um projeto que au­menta os incentivos fiscais para o in­vestimento social privado, bandeira de inúmeras empresas e ONGs Brasil afora. A idéia é que companhias e pes­soas fisicas tenham o direito de aba­ter do imposto de renda: pelo menos parte do valor destinado a ações sociais. Em linhas gerais, o argumento é que, ao incentivar o investimento, social, o governo finalmente colocará o combate às desigualdades como de do Estado na sociedade. Ou seja, até alguns, a privatização do investimento como desafio número um do país. E reconhecerá, na prática, que a responsabilidade pelo combate à pobreza, ao analfabetismo e a outras mazelas brasileiras já é um problema do Estado, mas também da iniciativa privada e de toda a sociedade civil.
Posta assim, a questão parece simples: bastaria transformar a intenção em regra e todos se dariam por satisfeitos. No entanto, a proposta tem um conteúdo polêmico por envolver uma discussão ideológica. Afinal, trata-se de colocar na balança o papel do Estado na sociedade. Ou seja, até que ponto ainda cabe ao setor público ser praticamente o único operador de iniciativas e ações sociais? Afinal, não é difícil admitir que, durante todo o século 20, as tentativas dos dovernos de abrandar as desigualdades sociais se mostraram ineficazes.

Privatização do social – Muitos temem que o aumento dos incentivos fiscais seja, no fundo, o início de uma transferência de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada e o terceiro setor. Ou, como preferem alguns, a privatização do investimento social. Uma espécie de nova fase da desestatização é do enxugamento da máquina pública. “Nenhum país do mundo conseguiu sair da pobreza sem ser por políticas públicas. As empresas podem ser parceiras, podem melhorar a vida de determinada parte da população, mas o alcance de suas ações sempre será pequeno”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, principal entidade de responsabilidade social do país.
Na realidade, mesmo os defensores dos incentivos não pregam o que se poderia chamar de gestão privada dos recursos públicos. Nenhum deles elege como ideal a transferência de responsabilidades, nem apresenta os empresários como altruísticos super heróis encarregados de defender os fracos e oprimidos. O que propõem é criar uma parceria entre setores públicos e privados, relação hoje marcada por “desconfiança de parte a parte”, na opinião de Grajew. E os benefícios fiscais seriam um início de aproximação. “É uma forma de universalizar a responsabilidade social”, acredita o advogado Ives Gandra Martins, um dos principais juristas brasileiros.
“Não queremos ocupar o lugar do Estado. Quem determina a política social, quem fiscaliza e quem tem condições de dar a escala de investimentos sociais demandados continua sendo o Estado”, sintetiza Leo Voigt, presidente do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as principais entidades empresariais de cunho social do país (Abrinq, Ayrton Senna, Bradesco, Kellogg, entre outros). Voigt é um dos grandes entusiastas do aumento dos benefícios fiscais. O deputado estadual gaúcho César Busatto, idealizador de um dos únicos projetos que prevê incentivos para investimento social em todo o país (veja quadro acima), mostra o outro lado da moeda: “O governo também não tem como dar conta de todo o investimento isoladamente. Até porque houve um processo de enxugamento do Estado nos últimos anos”. Portanto, o raciocínio é que nem o governo, nem a iniciativa privada e tampouco o terceiro setor têm condições de encarar a bronca sozinho – e, portanto, estaria mais do que na hora de fazer uma “corrente pra frente”.

Tartaruga e baleia – Outro forte argumento em favor dos incentivos é que, sempre que o governo colocou algo como prioridade, usou os impostos como arma. Foi assim com a agricultura, com a indústria e com a tecnologia. Recentemente, por exemplo, o governo retirou as alíquotas de importação de máquinas para a fabricação de papel imprensa como objetivo de reduzir o enorme déficit comercial deste produto. Mas o caso mais invocado é o da cultura. Graças à Lei Rouanet, a empresa que faz investimentos culturais pode abater até 4% do que deve ao Leão. Na prática, acaba deduzindo até 80% do gasto total (e, no caso de livros, 100%). “O governo dá muito mais incentivos para investimentos em cinema, teatro e cultura do que para saúde e educação, que são necessidades básicas”, cobra Rodrigo Baggio. Diretor e fundador da ONG Comitê pela Democratização da Informática (CDI). Leo Voigt, do Gife, é incisivo: “Só queremos que criança, deficiente e idoso tenham o mesmo tratamento que o patrimônio cultural, as zonas francas, as baleias e as tartarugas do Projeto Tamar”.
A defesa da via dos benefícios fiscais não termina aí. Alega-se ainda que, nos países desenvolvidos, a concessão dos incentivos é disseminada e funcionou como alavanca do terceiro setor: Em nações como França e Alemanha, 60% dos recursos das entidades sem fins lucrativos vêm dos cofres públicos, seja diretamente, seja por renúncia fiscal. No mundo todo, a média é de 40%. No Brasil, este número está abaixo de 20%.
A lógica por trás do comportamento nas nações ricas é a crença de que, em muitos casos, o investimento das ONGs e da sociedade civil é mais eficiente do que o feito pelo governo, cujo dinheiro precisa percorrer as entranhas da burocracia estatal antes de chegar ao destino final. “Os cidadãos sabem melhor que o Estado o que é importante para sua comunidade, seu bairro. E, com os incentivos, são os cidadãos que assumem a responsabilidade pelos investimentos e decidem para onde eles vão”, defende Joaquim Falcão, membro do conselho da Comunidade Solidária e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Uni­versidade Federal do Rio de Janeiro. De fato, não faltam críticas ao inves­timento social do governo brasileiro.
Certa feita, o economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pes­quisas Econômicas Aplicadas (Ipea), um dos principais estudiosos brasilei­ros de políticas sociais, afirmou que para os recursos chegarem em quem realmente precisa seria mais fácil o governo abandonar as políticas que existem hoje, colocar todo o dinheiro em um helicóptero e jogar pela jane­la. Exageros à parte, um estudo do Banco Mundial (Bird) mostrou que apenas 19% do orçamento social bra­sileiro vai para os 20% mais miserá­veis. Isso acontece por diversos moti­vos. O principal deles é que boa parte desse valor termina na carteira da elite. Um exemplo prático disso é o ensino superior. O montante repas­sado às universidades públicas, que possui status de investimento social, beneficia muito a classe média. Além disso, outra parcela significativa do di­nheiro serve para arcar com os pesa­dos custos da máquina pública. Para encerrar, há os perversos mecanis­mos da corrupção, que está longe de ser exclusividade brasileira.

Paradigmas - O deputado gaúcho Cesar Busatto aponta mais um aspec­to geralmente ignorado nas críticas às políticas sociais de governos: as par­cas informações que o Estado possui sobre a população pobre. Sabe-se que ela existe, é monstruosa, mas os cál­culos são invariavelmente estimativas. Não há conhecimento exato de onde se localiza, tampouco das necessidades e dos anseios de cada bolsão de pobreza.
Em vez de ser a burocracia esta­tal que decide quem vai sob esta óti­ca, um primeiro esforço para aprimo­rar o investimento social do governo seria a busca por dados mais preci­sos e confiáveis a respeito das popu­lações carentes. E aí é que está um dos aspectos mais relevantes desta discussão toda: se os investimentos sociais do governo já se revelaram incapazes de melhorar efetivamente a vida dos miseráveis, envolver mais a iniciativa privada é uma das solu­ções? Na opinião de Oded Grajew, do Instituto Ethos, primeiro é preciso aperfeiçoar as políticas públicas e fis­calizar sua execução com mais afin­co, para que os recursos cheguem nas mãos de quem realmente precisa. Não que ele seja contrário à partici­pação mais efetiva das empresas na
melhoria da vida da população caren­te, ressalta. Presidente da Fundação Telefônica e um dos nomes mais res­peitados do terceiro setor, Sérgio Mindlin aponta uma das principais contribuições que a iniciativa priva­da pode dar daqui para a frente, se­guindo a lógica da parceria: a de es­tabelecer novos paradigmas e expe­rimentar outras metodologias que posteriormente poderão ser adotadas pelo próprio governo. "Cabe à socie­dade civil fazer investimentos com­plementares e inovadores”, acredita Mindlin. _
Favorável aos incentivos, Mindlin acredita que, antes de criá-los, é preciso aprimorar alguns defeitos vistos em leis parecidas, como a da cultura. E aí está uma crítica bastante con­tundente à política dos be­nefícios: é preciso encon­trar formas de fiscalizar melhor onde vão parar os recursos que deixam de ir para a Receita. Grajew in­forma, por exemplo, que a lei cultural é muitas vezes utilizada com fins essencial­mente mercadológicos. Como é sabido, associar a marca da empresa à cultu­ra traz retornos intangí­veis, mas reais. Nos inves­timentos sociais, o retorno à imagem institucional da empresa pode ser ainda maior. Não é à toa que, sem­pre que podem, muitas empresas fazem questão de mostrar ao público suas ações sociais relevantes, sobretudo por meio do cada vez mais dis­seminado balanço social.
Se de fato houver aumento dos incentivos fiscais, essa transparência sobre onde foi posto cada centavo des­tinado a ações para a comunidade se torna premente. Só assim, o contri­buinte e a sociedade em geral podem ter certeza do destino dado a seu di­nheiro. "Será fundamental saber o que motiva a empresa a escolher deter­minado programa ou entidade para investir. Se é um compromisso social mesmo", reforça Marcos Fuchs, dire­tor-adjunto da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).

Minorias - O.k., mas se as ações sociais rendem um retorno extrema­mente benéfico à imagem da empre­sa perante o público, a troco de que o governo vai pagar a conta, ou pelo menos parte dela? Em geral, os de­fensores dos incentivos alegam que o objetivo não é ratear os custos, mas motivar as empresas a aumentar cada vez mais o bolo que vai para o social­e abrir os olhos daquelas que ainda não gastam nem um centavo. Tanto que as propostas jamais prevêem aba­timento total do gastos. Mas esse ar­gumento se enfraquece um pouco quando se observa que a imensa maio­ria das empresas que poderia utilizar os benefícios fiscais que existem hoje não o faz. As companhias que medem os resultados a partir do lucro real po­dem destinar até 1% do imposto devi­do aos fundos"1llunicipais da criança e do adolescente.
De acordo com a pesquisa Ação Social das Empresas, recém-divulgada pelo Ipea, apenas 6% delas se apro­veitam dos incentivos existentes. Na Região Sul, este percentual cai para mísero 1%. "A motivação das empre­sas é principalmente humanitária ou por pressão das comunidades vizi­nhas", informa Anna Maria Peliano, coordenadora da pesquisa. "Não é ne­cessário o incentivo para mobilizar as empresas. Elas vão continuar inves­tindo, e cada vez mais, independente­mente disso", aposta Ana Maria Wilheim, superintendente da Funda­ção Abrinq. Ela não é contra novos estímulos fiscais, mas acha que o mais importante e pragmático neste mo­mento é melhorar os incentivos já existentes. Apenas 3% das empresas brasileiras fecham as contas a partir do lucro real (a maioria é presumido ou Simples) e, portanto, apenas uma minoria pode abater do imposto o va­lor destinado aos fundos da criança e do adolescente - o que explica, em par­te, o resultado da pesquisa do Ipea. Outro ponto crítico envolve as pessoas fisicas. Todas têm o direito de desti­nar até 6% do imposto devido aos mesmos fundos. Detalhe: para isso, precisam avisar o governo até o final do ano de exercício. O problema é que quase todo o mundo começa a pen­sar no Leão só perto de abril, época de mandar a declaração. Se o con­tribuinte resolve doar a essas alturas do campeonato, aí é tarde demais.
Boa notícia: existe um projeto de lei no Congresso atualmente para cor­rigir isso. A perspectiva é de que seja aprovado ainda neste ano. Eduardo Szazi, consultor jurídico do Gife, le­vanta outra polêmica que afugenta as pessoas interessadas em doar parte dos imostos: “Em geral, a receita coloca na malha fina os contribuintes que destinam parte do imposto para os fundos”.


Inimigos - A propósito, a Receita é a grande adversária dos defenso­res dos incentivos. Para que virem regra, é preciso que os beneficios se­jam aprovados no Congresso. E, como o assunto envolve o Orçamento, é re­comendável que o projeto de lei par­ta do próprio executivo. A grande alia­da é a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do Comunidade Solidária, que se manifestou publicamente a favor dos incentivos. Já Everardo Maciel, secretário da Receita, não quer nem ouvir falar no assunto. Por tudo isso, é pouco provável que saia alguma lei ainda neste ano. Até por­que, depois de todos os esforços do governo para acertar as contas pú­blicas, ninguém parece muito inte­ressado em discutir medidas que pos­sam cortar a arrecadação. Mas isso



TABELA 1

Motivo para a ação
O que leva as empresas a fazer ações sociais (em %)

Atender os motivos humanitários – 76%

Atender as comunidades próximas ao local da empresa – 38%

Atender pedidos de outras entidades (governamentais ou comunitárias) – 33%

Melhorar a imagem da empresa – 26%

Aumentar a satisfação dos empregados da empresa – 25%





Nomes aos bois

Um erro muito comum nestes tempos em que as empresas se preocupam cada vez mais com a comunidade é confundir responsabilidade social com investimento social privado. Apesar de os dois conceitos terem relação, não são a mesma coisa. Responsabilidade social está ligada à gestão da empresa, ou seja, aos valores que norteiam todas as suas relações: com funcionários, fornecedores, clientes, investidores, governo, meio ambiente e a comunidade. A recomendação é que, em todos os casos, a empresa seja ética e responsável. “Não adianta realizar ações sociais e pagar mal ou atrasae muito o salário dos funcionários. Vai parecer propaganda enganosa”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos. Já os investimentos sociais privados, um dos pilares da responsabilidade social, dizem respeito às iniciativas que beneficiam apenas a comunidade, e não funcionários, acionistas e outros públicos internos. Como explica Leo Voigt, presidente do Gife, “na responsabilidade social, o interesse é privado. Nos investimentos sociais, é público”.





Onde a teoria pode virar prática

Apesar de todas as discussões que o assunto vem suscitando, só existe um projeto de lei em todo o país que prevê o aumento de incentivos fiscais para os investimentos sociais privados. Trata-se de uma proposta da Assembléia do Rio Grande do Sul pata permitir às empresas a dedução de até 75% do que investiram em ações sociais sobre o ICMS que têm a pagar. A isenção, nesse projeto, fica limitada a até 20% do imposto total a ser pago pela empresa. Quanto maior for a organização, menor o limite para redução do ICMS. A proposta segue os moldes da lei estadual de incentivo à cultura (LIC). “Não vejo problema nenhum em usar o ICMS para incentivar o investimento social. Seria uma incongruência tremenda ter uma lei para a cultura e nenhuma que beneficiasse socialmente a comunidade”, defende o deputado estadual César Busato, um dos idealizadores do projeto. Na realidade, havia dois projetos distintos, um proposto por Busatto, outro pela federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que foram reunidos em um só. Como envolve o orçamento do Estado, os deputados decidiram transformar os textos em projeto da Assembléia. “O ideal mesmo era que partisse do próprio executivo”, entende Maurício Vian, consultor da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
Neste momento, o presidente da Assembléia, Sérgio Zambiasi, está empenhado em reunir assinaturas de todos os deputados – só faltam as da bancada do PT, partido do governo.