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Friday, July 08, 2005

A liberdade de fazer

LE MONDE
Diplomatique

Exclusivo

Tendo interiorizado a lógica do capitalismo, a maior parte dos jornalistas adere alegremente às exigências do sistema. Age de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
Por Alain Accardo

Observador dos meios de comunicação deveria partir da premissa de que os jornalistas, em sua grande maioria, não estão maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro das empresas para as quais trabalham, em particular, e dos capitalistas, em geral. Se o jornalista age como “condicionador” daqueles a quem se dirige, não é pelo desejo de condiciona-los e sim por ser ele próprio condicionado, a um grau que ele, como a maioria na profissão, não percebe. Assim, cada jornalista, fazendo (ou não fazendo) espontaneamente o que quer, concorda espontaneamente com todos os demais. Pode-se dizer, com o poeta Robert Desnos, que obedecem à lógica do pelicano: “O pelicano bota um ovo bem branquinho/De onde sai, inevitavelmente/Um outro que faz tudo igualzinho”.
Os investidores e comerciantes que se apropriaram da parte essencial dos meios de comunicação não precisam ditar os jornalistas o que eles devem dizer ou mostrar. Não precisam violentar sua consciência, ou transforma-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais aceitaria tal coisa. Para garantir a melhor informação possível ao melhor dos mundos capitalistas, nada como deixar os jornalistas trabalharem livremente para ser mais exato, deixá-los acreditar que seu trabalho não obedece a nenhum outro imperativo, nenhum outro limite a não ser o das regras específicas do jogo aceito por todos. Deve-se confiar na “consciência profissional”. Assim, basta entregar as rédeas do poder nas relações aos homens e mulheres qualificados geralmente como “excelentes profissionais”, o que significa aqueles que nunca deixaram de compartilhar, explícita ou simplesmente, uma visão de mundo coincidente com a dos seus patrões. Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante um recrutamento de pessoal capaz de impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na kissa. Esse mecanismo começa a funcionar já nos cursos de jornalismo e prossegue, continuamente, nas redações.
Desse modo, os meios de comunicação estão seguramente amparados por uma rede na qual basta que cada um trabalhe “de acordo com seus sentimentos” para que trabalhe “como se deve”, ou seja, em defesa das normas e dos valores do modelo predominante. Assim se realiza o consenso entre uma direita em pane de idéias e uma esquerda que sofre da ruptura de um ideal.
No entanto, é preciso insistir no fato de que a eficácia de tal sistema repousa fundamentalmente na sinceridade e espontaneidade dos que nele investem, mesmo que esse investimento carregue uma certa dose de automistificação. Do jeito como é trabalhada, a informação jornalística é passível de muitas críticas e recriminações bem fundamentadas, entre elas a de limitar as idéias à problemática dominante, isto é, ao chamado pensamento único. Mas, se existe uma coisa que não se pode censurar nos jornalistas – salvo rara exceções – é a boa-fé com que realizam seu trabalho. Uma vez tendo assimilado perfeitamente a lógica do sistema, eles aceitam livremente aquilo em que são obrigados a acreditar. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.

NEM HIPOCRISIA NEM FALTA DE CARÁTER

Se tivéssemos de resumir em poucas palavras a crença fundamental dos jornalistas, diríamos que eles acreditam sinceramente em um capitalismo com face humana, e têm absoluta certeza de que nessa crença não há nada de ideológico. Como ocorre com os atores de todos os campos sociais, a visão dos jornalistas se caracteriza por uma mescla de doses variadas de lucidez e ceticismo, de visto e de não-visto ou intrevisto.

PROFISSIONAIS COOPTADOS, IDEOLOGICAMENTE CONFIÁVEIS, IMPEDEM A ENTRADA DE RAPOSAS NO GALINHEIRO OU DE HEREGES
NA MISSA.


Conseguem ver com clareza, por exemplo, os inúmeros exemplos de desumanidade do sistema capitalista pelo mundo afora, mas se recusam a enxergar nisso um traço inerente à essência mesma do capitalismo, interpretando tais exemplos como simples acidentes. Falam de “disfunções”, de “desvios”, de “excessos”, de “ovelhas negras”, condenáveis certamente mas de que modo algum comprometeriam o sistema que tendem a defender espontaneamente.
Assim, por exemplo, fazem uma crítica sincera de abomináveis “excessos” no tratamento da informação-mercadoria, excessos motivados pela concorrência, pela obrigação de rentabilidade, pelo índice de audiência, em suma, pela lógica do mercado. Mas o fato de essa mesma lógica provocar um aumento maciço de estagiários nas redações, com um contingente cada vez maior de jovens jornalistas sub-remunerados e descartáveis, vergonhosamente explorados por seus patrões, não os comove absolutamente.
O campo jornalístico, como muitos outros, funciona graças a algo que, objetivamente, deve ser chamado de impostura, no sentido de o jornalista só poder fazer o que faz, ou seja, contribuir para a manutenção da ordem simbólica, fazendo de conta que não o faz, como se não seguisse outro princípio que não o da utilidade pública e do bem comum, da verdade e da justiça. Hipocrisia ou mau-caratismo? Nem uma coisa nem outra. Nenhum sistema pode funcionar maciça e deliberadamente com base na impostura intencional e permanente. É necessário que as pessoas acreditem no que estão fazendo e que assumam uma ideologia socialmente aceita que não pode se resumir, no caso, a proclamar cinicamente “viva o reino do dinheiro, abaixo o humanismo arcaico, vamos ficar ricos e os pobres que se danem!”, mas que consiste em acreditar, na maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja liberal, fora da qual não há salvação possível.

DEUS E O DIABO

Muito felizmente para os donos do dinheiro, é dessa forma que podem povoar os meios de comunicação que compraram, com pessoas inteligentes, competentes e sinceras, pessoalmente condicionadas a transfigurar a lei da selva do capitalismo com aquilo que chamam de “modernidade” ou “democracia de mercado”.

Mas as conclusões válidas para os meios de comunicação valem também para segmentos inteiros da estrutura social. O microcosmo jornalístico e, nesse sentido, um espaço privilegiado para a observação in vivo do que ocorre nos campos da produção e da difusão de bens simbólicos, cujo corpo profissional pertence, na sua quase totalidade, à classe média (atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação etc.).
Foi a classe média – sobretudo a nova pequena burguesia, mas não apenas ela – que, investindo a fundo nesse sistema, injetou-lhe a dose de humanidade, inteligência, imaginação, tolerância, psicologia, em suma, o suplemento de alma necessário para que pudesse passar da exploração selvagem do “como se deve” trabalho assalariado – que grassava antes ainda da Segunda Guerra Mundial – a formas aparentemente mais civilizadas e compatíveis com o aumento das aspirações democráticas.
A esse respeito pode-se dizer que a modernização do capitalismo consistiu em desenvolver métodos de “gestão dos recursos humanos” e de comunicação para camuflar os abusos patronais por meio de eufemismos e envolver psicologicamente os assalariados na sua própria exploração. Sem dúvida, tamanha colaboração resulta em diversos ganhos materiais e morais, no primeiro caso a garantia da subsistência e no segundo a sensação de uma certa importância e utilidade para seus semelhantes. O que não é pouco.

AS CRÍTICAS AO SISTEMA ESTÃO LONGE DE POR EM RISCO A LÓGICA DOMINANTE; SUSTENTAM APENAS UM LOGORRÉICO DEBATE QUE QUASE NUNCA TOCA O ESSENCIAL.

Mas acontece que, por uma dessas artimanhas objetivas de que a história está cheia, o trabalho que essas pessoas executam traz lucros maiores ao sistema e às castas feudais que o dominam, de modo que, pensando servir a Deus, servem ao diabo. Mas fazem na melhor das intenções, com a consciência tranqüila, porque quase tudo que possa pesar na consciência é automaticamente autocensurado ou transfigurado. No íntimo, eles têm, como diria Pascal, “uma vontade de crer que supera suas razões para duvidar”. Provavelmente, isso acontece porque os jornalistas dominam profissionalmente as tecnologias do fazer-ver e do fazer-saber. Daí resulta que a visão de seu próprio meio de trabalho seja mais nítida que em outras categorias da classe média, cuja postura objetiva consiste em nunca ser nem nunca fazer por completo o que elas mesmas pensam que são e fazem, numa constante auto-encenação em que procuram aumentar sua importância.

A BUSCA DA AFIRMAÇÃO

Se é verdade que nenhum jogo social pode se desenvolver sem que os atores aceitem, em parte ou totalmente, “contar-se histórias”, iludir a si mesmos e aos outros, temos de admitir que a classe média têm uma tendência especial a “fazer teatro”. Essa propensão, antes de tudo nascisista, à dramatização de sua existência está ligada ao fato de pertencerem a um espaço social intermediário entre os dois pólos, o dominador e o dominado. Todos os traços característicos da pequena burguesia resultam dessa posição ambígua entre o insatisfatório e o abundante, entre o ser e o não ser, num mundo em que o valor social se tornou diretamente proporcional ao grau de acumulação do capital em geral, e do nível econômico em particular. “Os menos aquinhoados”, como se diz pudicamente, dispõem de pouquíssimo para se preocupar em valorizar o que têm e o que são. Os mais privilegiados, ao contrário, possuem bens demais para precisar se valorizar oferecendo-se como espetáculo. Na classe média, mais do que nas outras, existir socialmente significa ser notado.
Mas essa busca interminável de auto-afirmação raramente produz resultados totalmente satisfatórios. Os pequeno burgueses (em todas as suas funções), por sua posição intermediária, geralmente são mais sensíveis à distância das posições superiores que às vantagens intrínsecas da posição ocupada. Como já notava Stendhal, “a grande aspiração é ascender à classe superior à sua, que faz de tudo para impedir sua ascenção a ela”. Nisso reside uma fonte de grande frustração e ressentimento, uma espécie de lugar propício à patologia do reconhecimento social, origem primeira de inúmeros casos de sofrimento existencial que poderiam ser reunidos sob a denominação de “síndrome de Emma Bovary e de Julien Sorel”. Sofrimento que aumenta em vez de diminuir, por ser estruturalmente programado e, portanto, refratário a qualquer terapia. Uma pesquisa sobre o jornalismo de base fornece eloqüentes exemplos desse relacionamento ambíguo, que é ao mesmo tempo deslumbrado e exasperado, amoroso e despeitado, arrogante e doloroso, dos dominadores-dominados desse entremeio social.
Temos o direito de pensar que o único meio de remediar tal situação seria a decisão clara de participarmos ativamente de uma ação coletiva de natureza política e social que virasse romper com a lógica do sistema. Tarefa difícil, que exige colocar em questão o inconsciente social da situação, isto é, tudo que foi pessoalmente no mais fundo de nós mesmos, todos os elos profundos, todas as adesões carnais por meio das quais os indivíduos “aderem” a um sistema que os engendrou e condicionou a fazer, de livre e espontânea vontade e às vezes com infinita alegria, o que espera que eles façam. Por exemplo, enfrentarem-se impiedosamente numa competição implacável por objetivos ilusórios e risíveis, cuja perseguição e conquista, no final das contas, não provam nada, salvo precisamente que se está muitíssimo bem condicionado.
Até agora, os membros da classe média, por estarem condicionados não apenas pelos meios de comunicação mas por toda a sua socialização, trataram de cultivar, com perseverança, seu sonho de ascensão social e suas esperanças de vitória pessoal num universo cujas carências, contradições e iniqüidades eles próprios são chamados a denunciar. Mas essas opiniões críticas, por se restringirem ao registro político (muitas vezes politiqueiro), e o voto “à esquerda” a que costumam estar associadas, longe de pôr em risco a lógica dominante, têm o efeito de otimizar o funcionamento de um sistema que, além de se reproduzir no essencial, pode também se vangloriar de manter, nos meios de fato, quase nunca toca o essencial.

Alain Accardo é professor de sociologia da Universidade de Bordeaux-III, co-autor de Jornalistes Précaires, Lê Mascaret, Bordeaux, 1998.

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