Dinheiro público, ação privada
Proposta de vantagens fiscais para empresas que investem no social reacende o debate sobre os Papéis do Estado e da iniciativa privada na redução das desigualdades
Felipe Polydoro
Por décadas, as empresas foram vistas como insensíveis aos graves problemas sociais do país. Essa noção mudou drasticamente nos últimos anos. Entre as grandes, são pouquíssimas aquelas que ainda não fazem investimentos sociais. As pequenas e médias não ficam muito atrás e já provaram que, nessa matéria, tamanho não é documento. Se uma proposta que vem ganhando força entre os protagonistas do terceiro setor vingar, pode ser que a iniciativa privada se sinta ainda mais estimulada a destinar recursos para a comunidade.
Trata-se de um projeto que aumenta os incentivos fiscais para o investimento social privado, bandeira de inúmeras empresas e ONGs Brasil afora. A idéia é que companhias e pessoas fisicas tenham o direito de abater do imposto de renda: pelo menos parte do valor destinado a ações sociais. Em linhas gerais, o argumento é que, ao incentivar o investimento, social, o governo finalmente colocará o combate às desigualdades como de do Estado na sociedade. Ou seja, até alguns, a privatização do investimento como desafio número um do país. E reconhecerá, na prática, que a responsabilidade pelo combate à pobreza, ao analfabetismo e a outras mazelas brasileiras já é um problema do Estado, mas também da iniciativa privada e de toda a sociedade civil.
Posta assim, a questão parece simples: bastaria transformar a intenção em regra e todos se dariam por satisfeitos. No entanto, a proposta tem um conteúdo polêmico por envolver uma discussão ideológica. Afinal, trata-se de colocar na balança o papel do Estado na sociedade. Ou seja, até que ponto ainda cabe ao setor público ser praticamente o único operador de iniciativas e ações sociais? Afinal, não é difícil admitir que, durante todo o século 20, as tentativas dos dovernos de abrandar as desigualdades sociais se mostraram ineficazes.
Privatização do social – Muitos temem que o aumento dos incentivos fiscais seja, no fundo, o início de uma transferência de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada e o terceiro setor. Ou, como preferem alguns, a privatização do investimento social. Uma espécie de nova fase da desestatização é do enxugamento da máquina pública. “Nenhum país do mundo conseguiu sair da pobreza sem ser por políticas públicas. As empresas podem ser parceiras, podem melhorar a vida de determinada parte da população, mas o alcance de suas ações sempre será pequeno”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, principal entidade de responsabilidade social do país.
Na realidade, mesmo os defensores dos incentivos não pregam o que se poderia chamar de gestão privada dos recursos públicos. Nenhum deles elege como ideal a transferência de responsabilidades, nem apresenta os empresários como altruísticos super heróis encarregados de defender os fracos e oprimidos. O que propõem é criar uma parceria entre setores públicos e privados, relação hoje marcada por “desconfiança de parte a parte”, na opinião de Grajew. E os benefícios fiscais seriam um início de aproximação. “É uma forma de universalizar a responsabilidade social”, acredita o advogado Ives Gandra Martins, um dos principais juristas brasileiros.
“Não queremos ocupar o lugar do Estado. Quem determina a política social, quem fiscaliza e quem tem condições de dar a escala de investimentos sociais demandados continua sendo o Estado”, sintetiza Leo Voigt, presidente do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as principais entidades empresariais de cunho social do país (Abrinq, Ayrton Senna, Bradesco, Kellogg, entre outros). Voigt é um dos grandes entusiastas do aumento dos benefícios fiscais. O deputado estadual gaúcho César Busatto, idealizador de um dos únicos projetos que prevê incentivos para investimento social em todo o país (veja quadro acima), mostra o outro lado da moeda: “O governo também não tem como dar conta de todo o investimento isoladamente. Até porque houve um processo de enxugamento do Estado nos últimos anos”. Portanto, o raciocínio é que nem o governo, nem a iniciativa privada e tampouco o terceiro setor têm condições de encarar a bronca sozinho – e, portanto, estaria mais do que na hora de fazer uma “corrente pra frente”.
Tartaruga e baleia – Outro forte argumento em favor dos incentivos é que, sempre que o governo colocou algo como prioridade, usou os impostos como arma. Foi assim com a agricultura, com a indústria e com a tecnologia. Recentemente, por exemplo, o governo retirou as alíquotas de importação de máquinas para a fabricação de papel imprensa como objetivo de reduzir o enorme déficit comercial deste produto. Mas o caso mais invocado é o da cultura. Graças à Lei Rouanet, a empresa que faz investimentos culturais pode abater até 4% do que deve ao Leão. Na prática, acaba deduzindo até 80% do gasto total (e, no caso de livros, 100%). “O governo dá muito mais incentivos para investimentos em cinema, teatro e cultura do que para saúde e educação, que são necessidades básicas”, cobra Rodrigo Baggio. Diretor e fundador da ONG Comitê pela Democratização da Informática (CDI). Leo Voigt, do Gife, é incisivo: “Só queremos que criança, deficiente e idoso tenham o mesmo tratamento que o patrimônio cultural, as zonas francas, as baleias e as tartarugas do Projeto Tamar”.
A defesa da via dos benefícios fiscais não termina aí. Alega-se ainda que, nos países desenvolvidos, a concessão dos incentivos é disseminada e funcionou como alavanca do terceiro setor: Em nações como França e Alemanha, 60% dos recursos das entidades sem fins lucrativos vêm dos cofres públicos, seja diretamente, seja por renúncia fiscal. No mundo todo, a média é de 40%. No Brasil, este número está abaixo de 20%.
A lógica por trás do comportamento nas nações ricas é a crença de que, em muitos casos, o investimento das ONGs e da sociedade civil é mais eficiente do que o feito pelo governo, cujo dinheiro precisa percorrer as entranhas da burocracia estatal antes de chegar ao destino final. “Os cidadãos sabem melhor que o Estado o que é importante para sua comunidade, seu bairro. E, com os incentivos, são os cidadãos que assumem a responsabilidade pelos investimentos e decidem para onde eles vão”, defende Joaquim Falcão, membro do conselho da Comunidade Solidária e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De fato, não faltam críticas ao investimento social do governo brasileiro.
Certa feita, o economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), um dos principais estudiosos brasileiros de políticas sociais, afirmou que para os recursos chegarem em quem realmente precisa seria mais fácil o governo abandonar as políticas que existem hoje, colocar todo o dinheiro em um helicóptero e jogar pela janela. Exageros à parte, um estudo do Banco Mundial (Bird) mostrou que apenas 19% do orçamento social brasileiro vai para os 20% mais miseráveis. Isso acontece por diversos motivos. O principal deles é que boa parte desse valor termina na carteira da elite. Um exemplo prático disso é o ensino superior. O montante repassado às universidades públicas, que possui status de investimento social, beneficia muito a classe média. Além disso, outra parcela significativa do dinheiro serve para arcar com os pesados custos da máquina pública. Para encerrar, há os perversos mecanismos da corrupção, que está longe de ser exclusividade brasileira.
Paradigmas - O deputado gaúcho Cesar Busatto aponta mais um aspecto geralmente ignorado nas críticas às políticas sociais de governos: as parcas informações que o Estado possui sobre a população pobre. Sabe-se que ela existe, é monstruosa, mas os cálculos são invariavelmente estimativas. Não há conhecimento exato de onde se localiza, tampouco das necessidades e dos anseios de cada bolsão de pobreza.
Em vez de ser a burocracia estatal que decide quem vai sob esta ótica, um primeiro esforço para aprimorar o investimento social do governo seria a busca por dados mais precisos e confiáveis a respeito das populações carentes. E aí é que está um dos aspectos mais relevantes desta discussão toda: se os investimentos sociais do governo já se revelaram incapazes de melhorar efetivamente a vida dos miseráveis, envolver mais a iniciativa privada é uma das soluções? Na opinião de Oded Grajew, do Instituto Ethos, primeiro é preciso aperfeiçoar as políticas públicas e fiscalizar sua execução com mais afinco, para que os recursos cheguem nas mãos de quem realmente precisa. Não que ele seja contrário à participação mais efetiva das empresas na
melhoria da vida da população carente, ressalta. Presidente da Fundação Telefônica e um dos nomes mais respeitados do terceiro setor, Sérgio Mindlin aponta uma das principais contribuições que a iniciativa privada pode dar daqui para a frente, seguindo a lógica da parceria: a de estabelecer novos paradigmas e experimentar outras metodologias que posteriormente poderão ser adotadas pelo próprio governo. "Cabe à sociedade civil fazer investimentos complementares e inovadores”, acredita Mindlin. _
Favorável aos incentivos, Mindlin acredita que, antes de criá-los, é preciso aprimorar alguns defeitos vistos em leis parecidas, como a da cultura. E aí está uma crítica bastante contundente à política dos benefícios: é preciso encontrar formas de fiscalizar melhor onde vão parar os recursos que deixam de ir para a Receita. Grajew informa, por exemplo, que a lei cultural é muitas vezes utilizada com fins essencialmente mercadológicos. Como é sabido, associar a marca da empresa à cultura traz retornos intangíveis, mas reais. Nos investimentos sociais, o retorno à imagem institucional da empresa pode ser ainda maior. Não é à toa que, sempre que podem, muitas empresas fazem questão de mostrar ao público suas ações sociais relevantes, sobretudo por meio do cada vez mais disseminado balanço social.
Se de fato houver aumento dos incentivos fiscais, essa transparência sobre onde foi posto cada centavo destinado a ações para a comunidade se torna premente. Só assim, o contribuinte e a sociedade em geral podem ter certeza do destino dado a seu dinheiro. "Será fundamental saber o que motiva a empresa a escolher determinado programa ou entidade para investir. Se é um compromisso social mesmo", reforça Marcos Fuchs, diretor-adjunto da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).
Minorias - O.k., mas se as ações sociais rendem um retorno extremamente benéfico à imagem da empresa perante o público, a troco de que o governo vai pagar a conta, ou pelo menos parte dela? Em geral, os defensores dos incentivos alegam que o objetivo não é ratear os custos, mas motivar as empresas a aumentar cada vez mais o bolo que vai para o sociale abrir os olhos daquelas que ainda não gastam nem um centavo. Tanto que as propostas jamais prevêem abatimento total do gastos. Mas esse argumento se enfraquece um pouco quando se observa que a imensa maioria das empresas que poderia utilizar os benefícios fiscais que existem hoje não o faz. As companhias que medem os resultados a partir do lucro real podem destinar até 1% do imposto devido aos fundos"1llunicipais da criança e do adolescente.
De acordo com a pesquisa Ação Social das Empresas, recém-divulgada pelo Ipea, apenas 6% delas se aproveitam dos incentivos existentes. Na Região Sul, este percentual cai para mísero 1%. "A motivação das empresas é principalmente humanitária ou por pressão das comunidades vizinhas", informa Anna Maria Peliano, coordenadora da pesquisa. "Não é necessário o incentivo para mobilizar as empresas. Elas vão continuar investindo, e cada vez mais, independentemente disso", aposta Ana Maria Wilheim, superintendente da Fundação Abrinq. Ela não é contra novos estímulos fiscais, mas acha que o mais importante e pragmático neste momento é melhorar os incentivos já existentes. Apenas 3% das empresas brasileiras fecham as contas a partir do lucro real (a maioria é presumido ou Simples) e, portanto, apenas uma minoria pode abater do imposto o valor destinado aos fundos da criança e do adolescente - o que explica, em parte, o resultado da pesquisa do Ipea. Outro ponto crítico envolve as pessoas fisicas. Todas têm o direito de destinar até 6% do imposto devido aos mesmos fundos. Detalhe: para isso, precisam avisar o governo até o final do ano de exercício. O problema é que quase todo o mundo começa a pensar no Leão só perto de abril, época de mandar a declaração. Se o contribuinte resolve doar a essas alturas do campeonato, aí é tarde demais.
Boa notícia: existe um projeto de lei no Congresso atualmente para corrigir isso. A perspectiva é de que seja aprovado ainda neste ano. Eduardo Szazi, consultor jurídico do Gife, levanta outra polêmica que afugenta as pessoas interessadas em doar parte dos imostos: “Em geral, a receita coloca na malha fina os contribuintes que destinam parte do imposto para os fundos”.
Inimigos - A propósito, a Receita é a grande adversária dos defensores dos incentivos. Para que virem regra, é preciso que os beneficios sejam aprovados no Congresso. E, como o assunto envolve o Orçamento, é recomendável que o projeto de lei parta do próprio executivo. A grande aliada é a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do Comunidade Solidária, que se manifestou publicamente a favor dos incentivos. Já Everardo Maciel, secretário da Receita, não quer nem ouvir falar no assunto. Por tudo isso, é pouco provável que saia alguma lei ainda neste ano. Até porque, depois de todos os esforços do governo para acertar as contas públicas, ninguém parece muito interessado em discutir medidas que possam cortar a arrecadação. Mas isso
TABELA 1
Motivo para a ação
O que leva as empresas a fazer ações sociais (em %)
Atender os motivos humanitários – 76%
Atender as comunidades próximas ao local da empresa – 38%
Atender pedidos de outras entidades (governamentais ou comunitárias) – 33%
Melhorar a imagem da empresa – 26%
Aumentar a satisfação dos empregados da empresa – 25%
Nomes aos bois
Um erro muito comum nestes tempos em que as empresas se preocupam cada vez mais com a comunidade é confundir responsabilidade social com investimento social privado. Apesar de os dois conceitos terem relação, não são a mesma coisa. Responsabilidade social está ligada à gestão da empresa, ou seja, aos valores que norteiam todas as suas relações: com funcionários, fornecedores, clientes, investidores, governo, meio ambiente e a comunidade. A recomendação é que, em todos os casos, a empresa seja ética e responsável. “Não adianta realizar ações sociais e pagar mal ou atrasae muito o salário dos funcionários. Vai parecer propaganda enganosa”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos. Já os investimentos sociais privados, um dos pilares da responsabilidade social, dizem respeito às iniciativas que beneficiam apenas a comunidade, e não funcionários, acionistas e outros públicos internos. Como explica Leo Voigt, presidente do Gife, “na responsabilidade social, o interesse é privado. Nos investimentos sociais, é público”.
Onde a teoria pode virar prática
Apesar de todas as discussões que o assunto vem suscitando, só existe um projeto de lei em todo o país que prevê o aumento de incentivos fiscais para os investimentos sociais privados. Trata-se de uma proposta da Assembléia do Rio Grande do Sul pata permitir às empresas a dedução de até 75% do que investiram em ações sociais sobre o ICMS que têm a pagar. A isenção, nesse projeto, fica limitada a até 20% do imposto total a ser pago pela empresa. Quanto maior for a organização, menor o limite para redução do ICMS. A proposta segue os moldes da lei estadual de incentivo à cultura (LIC). “Não vejo problema nenhum em usar o ICMS para incentivar o investimento social. Seria uma incongruência tremenda ter uma lei para a cultura e nenhuma que beneficiasse socialmente a comunidade”, defende o deputado estadual César Busato, um dos idealizadores do projeto. Na realidade, havia dois projetos distintos, um proposto por Busatto, outro pela federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que foram reunidos em um só. Como envolve o orçamento do Estado, os deputados decidiram transformar os textos em projeto da Assembléia. “O ideal mesmo era que partisse do próprio executivo”, entende Maurício Vian, consultor da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
Neste momento, o presidente da Assembléia, Sérgio Zambiasi, está empenhado em reunir assinaturas de todos os deputados – só faltam as da bancada do PT, partido do governo.
Proposta de vantagens fiscais para empresas que investem no social reacende o debate sobre os Papéis do Estado e da iniciativa privada na redução das desigualdades
Felipe Polydoro
Por décadas, as empresas foram vistas como insensíveis aos graves problemas sociais do país. Essa noção mudou drasticamente nos últimos anos. Entre as grandes, são pouquíssimas aquelas que ainda não fazem investimentos sociais. As pequenas e médias não ficam muito atrás e já provaram que, nessa matéria, tamanho não é documento. Se uma proposta que vem ganhando força entre os protagonistas do terceiro setor vingar, pode ser que a iniciativa privada se sinta ainda mais estimulada a destinar recursos para a comunidade.
Trata-se de um projeto que aumenta os incentivos fiscais para o investimento social privado, bandeira de inúmeras empresas e ONGs Brasil afora. A idéia é que companhias e pessoas fisicas tenham o direito de abater do imposto de renda: pelo menos parte do valor destinado a ações sociais. Em linhas gerais, o argumento é que, ao incentivar o investimento, social, o governo finalmente colocará o combate às desigualdades como de do Estado na sociedade. Ou seja, até alguns, a privatização do investimento como desafio número um do país. E reconhecerá, na prática, que a responsabilidade pelo combate à pobreza, ao analfabetismo e a outras mazelas brasileiras já é um problema do Estado, mas também da iniciativa privada e de toda a sociedade civil.
Posta assim, a questão parece simples: bastaria transformar a intenção em regra e todos se dariam por satisfeitos. No entanto, a proposta tem um conteúdo polêmico por envolver uma discussão ideológica. Afinal, trata-se de colocar na balança o papel do Estado na sociedade. Ou seja, até que ponto ainda cabe ao setor público ser praticamente o único operador de iniciativas e ações sociais? Afinal, não é difícil admitir que, durante todo o século 20, as tentativas dos dovernos de abrandar as desigualdades sociais se mostraram ineficazes.
Privatização do social – Muitos temem que o aumento dos incentivos fiscais seja, no fundo, o início de uma transferência de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada e o terceiro setor. Ou, como preferem alguns, a privatização do investimento social. Uma espécie de nova fase da desestatização é do enxugamento da máquina pública. “Nenhum país do mundo conseguiu sair da pobreza sem ser por políticas públicas. As empresas podem ser parceiras, podem melhorar a vida de determinada parte da população, mas o alcance de suas ações sempre será pequeno”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, principal entidade de responsabilidade social do país.
Na realidade, mesmo os defensores dos incentivos não pregam o que se poderia chamar de gestão privada dos recursos públicos. Nenhum deles elege como ideal a transferência de responsabilidades, nem apresenta os empresários como altruísticos super heróis encarregados de defender os fracos e oprimidos. O que propõem é criar uma parceria entre setores públicos e privados, relação hoje marcada por “desconfiança de parte a parte”, na opinião de Grajew. E os benefícios fiscais seriam um início de aproximação. “É uma forma de universalizar a responsabilidade social”, acredita o advogado Ives Gandra Martins, um dos principais juristas brasileiros.
“Não queremos ocupar o lugar do Estado. Quem determina a política social, quem fiscaliza e quem tem condições de dar a escala de investimentos sociais demandados continua sendo o Estado”, sintetiza Leo Voigt, presidente do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as principais entidades empresariais de cunho social do país (Abrinq, Ayrton Senna, Bradesco, Kellogg, entre outros). Voigt é um dos grandes entusiastas do aumento dos benefícios fiscais. O deputado estadual gaúcho César Busatto, idealizador de um dos únicos projetos que prevê incentivos para investimento social em todo o país (veja quadro acima), mostra o outro lado da moeda: “O governo também não tem como dar conta de todo o investimento isoladamente. Até porque houve um processo de enxugamento do Estado nos últimos anos”. Portanto, o raciocínio é que nem o governo, nem a iniciativa privada e tampouco o terceiro setor têm condições de encarar a bronca sozinho – e, portanto, estaria mais do que na hora de fazer uma “corrente pra frente”.
Tartaruga e baleia – Outro forte argumento em favor dos incentivos é que, sempre que o governo colocou algo como prioridade, usou os impostos como arma. Foi assim com a agricultura, com a indústria e com a tecnologia. Recentemente, por exemplo, o governo retirou as alíquotas de importação de máquinas para a fabricação de papel imprensa como objetivo de reduzir o enorme déficit comercial deste produto. Mas o caso mais invocado é o da cultura. Graças à Lei Rouanet, a empresa que faz investimentos culturais pode abater até 4% do que deve ao Leão. Na prática, acaba deduzindo até 80% do gasto total (e, no caso de livros, 100%). “O governo dá muito mais incentivos para investimentos em cinema, teatro e cultura do que para saúde e educação, que são necessidades básicas”, cobra Rodrigo Baggio. Diretor e fundador da ONG Comitê pela Democratização da Informática (CDI). Leo Voigt, do Gife, é incisivo: “Só queremos que criança, deficiente e idoso tenham o mesmo tratamento que o patrimônio cultural, as zonas francas, as baleias e as tartarugas do Projeto Tamar”.
A defesa da via dos benefícios fiscais não termina aí. Alega-se ainda que, nos países desenvolvidos, a concessão dos incentivos é disseminada e funcionou como alavanca do terceiro setor: Em nações como França e Alemanha, 60% dos recursos das entidades sem fins lucrativos vêm dos cofres públicos, seja diretamente, seja por renúncia fiscal. No mundo todo, a média é de 40%. No Brasil, este número está abaixo de 20%.
A lógica por trás do comportamento nas nações ricas é a crença de que, em muitos casos, o investimento das ONGs e da sociedade civil é mais eficiente do que o feito pelo governo, cujo dinheiro precisa percorrer as entranhas da burocracia estatal antes de chegar ao destino final. “Os cidadãos sabem melhor que o Estado o que é importante para sua comunidade, seu bairro. E, com os incentivos, são os cidadãos que assumem a responsabilidade pelos investimentos e decidem para onde eles vão”, defende Joaquim Falcão, membro do conselho da Comunidade Solidária e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De fato, não faltam críticas ao investimento social do governo brasileiro.
Certa feita, o economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), um dos principais estudiosos brasileiros de políticas sociais, afirmou que para os recursos chegarem em quem realmente precisa seria mais fácil o governo abandonar as políticas que existem hoje, colocar todo o dinheiro em um helicóptero e jogar pela janela. Exageros à parte, um estudo do Banco Mundial (Bird) mostrou que apenas 19% do orçamento social brasileiro vai para os 20% mais miseráveis. Isso acontece por diversos motivos. O principal deles é que boa parte desse valor termina na carteira da elite. Um exemplo prático disso é o ensino superior. O montante repassado às universidades públicas, que possui status de investimento social, beneficia muito a classe média. Além disso, outra parcela significativa do dinheiro serve para arcar com os pesados custos da máquina pública. Para encerrar, há os perversos mecanismos da corrupção, que está longe de ser exclusividade brasileira.
Paradigmas - O deputado gaúcho Cesar Busatto aponta mais um aspecto geralmente ignorado nas críticas às políticas sociais de governos: as parcas informações que o Estado possui sobre a população pobre. Sabe-se que ela existe, é monstruosa, mas os cálculos são invariavelmente estimativas. Não há conhecimento exato de onde se localiza, tampouco das necessidades e dos anseios de cada bolsão de pobreza.
Em vez de ser a burocracia estatal que decide quem vai sob esta ótica, um primeiro esforço para aprimorar o investimento social do governo seria a busca por dados mais precisos e confiáveis a respeito das populações carentes. E aí é que está um dos aspectos mais relevantes desta discussão toda: se os investimentos sociais do governo já se revelaram incapazes de melhorar efetivamente a vida dos miseráveis, envolver mais a iniciativa privada é uma das soluções? Na opinião de Oded Grajew, do Instituto Ethos, primeiro é preciso aperfeiçoar as políticas públicas e fiscalizar sua execução com mais afinco, para que os recursos cheguem nas mãos de quem realmente precisa. Não que ele seja contrário à participação mais efetiva das empresas na
melhoria da vida da população carente, ressalta. Presidente da Fundação Telefônica e um dos nomes mais respeitados do terceiro setor, Sérgio Mindlin aponta uma das principais contribuições que a iniciativa privada pode dar daqui para a frente, seguindo a lógica da parceria: a de estabelecer novos paradigmas e experimentar outras metodologias que posteriormente poderão ser adotadas pelo próprio governo. "Cabe à sociedade civil fazer investimentos complementares e inovadores”, acredita Mindlin. _
Favorável aos incentivos, Mindlin acredita que, antes de criá-los, é preciso aprimorar alguns defeitos vistos em leis parecidas, como a da cultura. E aí está uma crítica bastante contundente à política dos benefícios: é preciso encontrar formas de fiscalizar melhor onde vão parar os recursos que deixam de ir para a Receita. Grajew informa, por exemplo, que a lei cultural é muitas vezes utilizada com fins essencialmente mercadológicos. Como é sabido, associar a marca da empresa à cultura traz retornos intangíveis, mas reais. Nos investimentos sociais, o retorno à imagem institucional da empresa pode ser ainda maior. Não é à toa que, sempre que podem, muitas empresas fazem questão de mostrar ao público suas ações sociais relevantes, sobretudo por meio do cada vez mais disseminado balanço social.
Se de fato houver aumento dos incentivos fiscais, essa transparência sobre onde foi posto cada centavo destinado a ações para a comunidade se torna premente. Só assim, o contribuinte e a sociedade em geral podem ter certeza do destino dado a seu dinheiro. "Será fundamental saber o que motiva a empresa a escolher determinado programa ou entidade para investir. Se é um compromisso social mesmo", reforça Marcos Fuchs, diretor-adjunto da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).
Minorias - O.k., mas se as ações sociais rendem um retorno extremamente benéfico à imagem da empresa perante o público, a troco de que o governo vai pagar a conta, ou pelo menos parte dela? Em geral, os defensores dos incentivos alegam que o objetivo não é ratear os custos, mas motivar as empresas a aumentar cada vez mais o bolo que vai para o sociale abrir os olhos daquelas que ainda não gastam nem um centavo. Tanto que as propostas jamais prevêem abatimento total do gastos. Mas esse argumento se enfraquece um pouco quando se observa que a imensa maioria das empresas que poderia utilizar os benefícios fiscais que existem hoje não o faz. As companhias que medem os resultados a partir do lucro real podem destinar até 1% do imposto devido aos fundos"1llunicipais da criança e do adolescente.
De acordo com a pesquisa Ação Social das Empresas, recém-divulgada pelo Ipea, apenas 6% delas se aproveitam dos incentivos existentes. Na Região Sul, este percentual cai para mísero 1%. "A motivação das empresas é principalmente humanitária ou por pressão das comunidades vizinhas", informa Anna Maria Peliano, coordenadora da pesquisa. "Não é necessário o incentivo para mobilizar as empresas. Elas vão continuar investindo, e cada vez mais, independentemente disso", aposta Ana Maria Wilheim, superintendente da Fundação Abrinq. Ela não é contra novos estímulos fiscais, mas acha que o mais importante e pragmático neste momento é melhorar os incentivos já existentes. Apenas 3% das empresas brasileiras fecham as contas a partir do lucro real (a maioria é presumido ou Simples) e, portanto, apenas uma minoria pode abater do imposto o valor destinado aos fundos da criança e do adolescente - o que explica, em parte, o resultado da pesquisa do Ipea. Outro ponto crítico envolve as pessoas fisicas. Todas têm o direito de destinar até 6% do imposto devido aos mesmos fundos. Detalhe: para isso, precisam avisar o governo até o final do ano de exercício. O problema é que quase todo o mundo começa a pensar no Leão só perto de abril, época de mandar a declaração. Se o contribuinte resolve doar a essas alturas do campeonato, aí é tarde demais.
Boa notícia: existe um projeto de lei no Congresso atualmente para corrigir isso. A perspectiva é de que seja aprovado ainda neste ano. Eduardo Szazi, consultor jurídico do Gife, levanta outra polêmica que afugenta as pessoas interessadas em doar parte dos imostos: “Em geral, a receita coloca na malha fina os contribuintes que destinam parte do imposto para os fundos”.
Inimigos - A propósito, a Receita é a grande adversária dos defensores dos incentivos. Para que virem regra, é preciso que os beneficios sejam aprovados no Congresso. E, como o assunto envolve o Orçamento, é recomendável que o projeto de lei parta do próprio executivo. A grande aliada é a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do Comunidade Solidária, que se manifestou publicamente a favor dos incentivos. Já Everardo Maciel, secretário da Receita, não quer nem ouvir falar no assunto. Por tudo isso, é pouco provável que saia alguma lei ainda neste ano. Até porque, depois de todos os esforços do governo para acertar as contas públicas, ninguém parece muito interessado em discutir medidas que possam cortar a arrecadação. Mas isso
TABELA 1
Motivo para a ação
O que leva as empresas a fazer ações sociais (em %)
Atender os motivos humanitários – 76%
Atender as comunidades próximas ao local da empresa – 38%
Atender pedidos de outras entidades (governamentais ou comunitárias) – 33%
Melhorar a imagem da empresa – 26%
Aumentar a satisfação dos empregados da empresa – 25%
Nomes aos bois
Um erro muito comum nestes tempos em que as empresas se preocupam cada vez mais com a comunidade é confundir responsabilidade social com investimento social privado. Apesar de os dois conceitos terem relação, não são a mesma coisa. Responsabilidade social está ligada à gestão da empresa, ou seja, aos valores que norteiam todas as suas relações: com funcionários, fornecedores, clientes, investidores, governo, meio ambiente e a comunidade. A recomendação é que, em todos os casos, a empresa seja ética e responsável. “Não adianta realizar ações sociais e pagar mal ou atrasae muito o salário dos funcionários. Vai parecer propaganda enganosa”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos. Já os investimentos sociais privados, um dos pilares da responsabilidade social, dizem respeito às iniciativas que beneficiam apenas a comunidade, e não funcionários, acionistas e outros públicos internos. Como explica Leo Voigt, presidente do Gife, “na responsabilidade social, o interesse é privado. Nos investimentos sociais, é público”.
Onde a teoria pode virar prática
Apesar de todas as discussões que o assunto vem suscitando, só existe um projeto de lei em todo o país que prevê o aumento de incentivos fiscais para os investimentos sociais privados. Trata-se de uma proposta da Assembléia do Rio Grande do Sul pata permitir às empresas a dedução de até 75% do que investiram em ações sociais sobre o ICMS que têm a pagar. A isenção, nesse projeto, fica limitada a até 20% do imposto total a ser pago pela empresa. Quanto maior for a organização, menor o limite para redução do ICMS. A proposta segue os moldes da lei estadual de incentivo à cultura (LIC). “Não vejo problema nenhum em usar o ICMS para incentivar o investimento social. Seria uma incongruência tremenda ter uma lei para a cultura e nenhuma que beneficiasse socialmente a comunidade”, defende o deputado estadual César Busato, um dos idealizadores do projeto. Na realidade, havia dois projetos distintos, um proposto por Busatto, outro pela federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que foram reunidos em um só. Como envolve o orçamento do Estado, os deputados decidiram transformar os textos em projeto da Assembléia. “O ideal mesmo era que partisse do próprio executivo”, entende Maurício Vian, consultor da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
Neste momento, o presidente da Assembléia, Sérgio Zambiasi, está empenhado em reunir assinaturas de todos os deputados – só faltam as da bancada do PT, partido do governo.
No comments:
Post a Comment