Por Márcia Detoni
A história das rádios comunitárias no Brasil está ligada ao surgimento das rádios livres, na década de 1970, época em que os meios de comunicação de massa estavam predominantemente nas mãos de pessoas ou grupos ligados ao poder
A primeira rádio livre de que se tem conhecimento foi a Paranóica, de Vitória-ES, inaugurada em outubro de 1970 por um adolescente de 16 anos, Eduardo Luiz Ferreira da Silva, amante de eletrônica. A emissora tocava músicas e fazia críticas a figuras da cidade, mas foi logo desativada. Eduardo e seu irmão de 15 anos, que ajudava nas transmissões, chegaram a ser presos sob acusação de subversão no auge da repressão militar.
Em 1976 foi a vez da Rádio Spectro, montada por outro adolescente, agitar a cidade de Sorocaba. O garoto de 14 anos transmitia duas horas por dia, recebendo até 20 telefonemas diários de ouvintes. Terra de muitos técnicos e estudantes de eletrônica, Sorocaba chegou a ter, segundo a imprensa local, cerca de 40 emissoras livres no início da década de 1980. A brincadeira acabou sendo interrompida pela ação das autoridades, mas não sem antes contagiar outros locais.
Em 1985, a capital paulista contava com dezenas de emissoras clandestinas e até com uma "cooperativa de rádio-amantes". Em um primeiro momento, as rádios livres eram uma iniciativa de jovens cansados da mesmice das FMs oficiais. Estavam interessados apenas em rock e na arte da radiofonia. Na década de 1980, com a ditadura militar dando sinais de esgotamento, começaram a surgir emissoras críticas à centralização dos meios de comunicação.
Segundo um pequeno manifesto da Cooperativa dos Rádio-Amantes de São Paulo, a intenção do grupo era promover uma reforma no espectro
radiofônico: "Iniciamos um movimento de reforma agrária no ar. O rádio é uma conquista técnica da humanidade e não pode ficar nas mãos [...] de proprietários-concessionários".
A Rádio Xilik, inaugurada em julho de 1985 no campus da PUCSP por alunos de ciências sociais, é o símbolo desse movimento pela democratização da comunicação. Os fundadores da emissora (Caio Magri, Arlindo Machado e Marcelo Masagão) foram fortemente influenciados por experiências européias de rádios piratas, principalmente as da Itália e da França.
Embora em número bem menor, também há registros nessa época de rádios livres fazendo transmissões com cunho essencialmente político. Os bancários de São Paulo colocaram no ar, em 1985, a Rádio Tereza, com 120 Watts de potência. Tereza é a corda que os prisioneiros fazem com os lençóis para fugir da cadeia. O nome foi escolhido simbolicamente, como uma tentativa de fuga da "cadeia global" que domina a comunicação.
A década de 1980 também representou o apogeu, no País, das rádios de alto-falantes, as chamadas "rádio-corneta", "rádio-poste", ou "rádio popular", o meio que muitas comunidades encontraram para levar suas mensagens aos moradores locais.
Na zona leste de São Paulo, essas emissoras começaram a surgir em
1983 e, em 1988, havia 42 delas. Aos poucos, no entanto, as "rádios-corneta" entraram em declínio e começaram a surgir as emissoras comunitárias propriamente ditas, sob a constante repressão da Polícia Federal e do Departamento Nacional de Telecomunicações - DENTEL, substituído pela Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, empenhados em apreender equipamentos e fechar as emissoras, muitas vezes prendendo os responsáveis e levando-os a julgamento.
Os primeiros registros de emissoras livres operando com caráter fortemente comunitário são de 1990. Na época, destacam-se a atuação da Rádio Livre Paulicéia, em Piracicaba-SP, que operou de julho de 1990 a abril de 1992, e a Rádio Novos Rumos, surgida em dezembro de 1990 em Queimados, município da Baixada Fluminense (RJ).
A Paulicéia, com 10 Watts de potência, era de propriedade dos moradores e gerida por um conselho coordenador escolhido por voto.
Atuava com base em uma assembléia composta de 120 pessoas que debatia o papel da emissora e sua programação. Não tinha fins lucrativos e contava com a participação intensa da comunidade tanto nas decisões como na produção de programas, recebendo de 30 a 40 telefonemas diários com sugestões, recados e perguntas. Cedia espaços para católicos (pastoral da juventude, movimento carismático), evangélicos, crianças, grupos de desempregados, grupos musicais, etc. No ar por até 120 horas semanais, chegou a ser a emissora mais ouvida da cidade. Mas foi fechada pela Polícia Federal.
A Novos Rumos também surgiu com caráter fortemente comunitário e, depois de ter sido fechada várias vezes, é hoje uma das mais ouvidas em Queimados. O estatuto da emissora garante a todo cidadão o direito de voz na programação. As diretrizes da emissora são elaboradas em assembléias semestrais com os associados, mas quem conduz a rádio no dia-a-dia é um conselho executivo de cinco membros. Os associados, cerca de 800, pagam uma mensalidade simbólica, mas as principais fontes de receita são os comerciais e prestação de serviços de áudio para terceiros.
Em 1995, o então ministro das Comunicações, Sérgio Motta, anúncia a intensão de formar uma comissão para elaborar uma proposta de regulamentação para as emissoras de baixa potência em todo o País. Isso estimula o surgimento de centenas de novas rádios, que começam a formar organizações para a defesa de suas emissoras.
A Associação Brasileira de Rádios Comunitárias - ABRAÇO é criada em
1996 para organizar e representar as emissoras de baixa potência.
Este Blog é destinado aos estudantes da Faculdade de Comunicação da PUCRS, curso de Jornalismo, e para os estudantes de Pós-Graduação.
MUITO PRAZER
Agradeço sua visita em meu blog e desejo que lhe seja útil. Se precisar de algum tipo de orientação acadêmica, estou à disposição na Faculdade de Cmunicação Social da PUCRS/Porto Alegre.
Thursday, September 22, 2005
DESENVOLVIMENTO DA RADIODIFUSÃO COMUNITÁRIA NO BRASIL
Por Márcia Detoni
A Associação Brasileira de Rádios Comunitárias - ABRAÇO é criada em 1996 para organizar e representar as emissoras de baixa potência. Ela e outras entidades, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, passam a organizar encontros sobre radiodifusão livre e comunitária e contribuem na elaboração das propostas de lei apresentadas no Congresso Nacional para a legalização das emissoras comunitárias. Em fevereiro de 1998, o Congresso Nacional aprova a Lei nº 9.612/98 instituindo o Serviço de Rádio Comunitária. Apesar de representar um avanço por finalmente regularizar o segmento, a lei impõe uma série de restrições que, segundo os representantes das rádios comunitárias, praticamente inviabilizam a atuação das emissoras:
- só permite a operação de emissoas com até 25 Watts de potência e antena inferior a 30 metros, o que restringe o alcance em áreas de alta densidade urbana ou cercadas por montanhas;
- autoriza o funcionamento de apenas uma rádio por vila ou bairro, sem levar em conta o tamanho da população;
- obriga todas as emissoras a operar na mesma freqüência, impedindo a coexistência de rádios comunitárias em bairros próximos;
- proíbe a formação de redes;
- proíbe a propaganda.
A única forma de patrocínio permitida é o apoio cultural, o que dificulta a obtenção de recursos para a manutenção de equipamentos, compra de discos, produção de programas, pagamento de funcionários. As restrições legais à radiodifusão comunitária são o resultado da pressão da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão - ABERT, patronal, sobre o governo e o Congresso. Desde meados da década de 1990, a ABERT desenvolve intensa campanha contra as rádios comunitárias temendo perder audiência e receita publicitária em um universo radiofônico cada vez maior e mais variado. O papel das rádios comunitárias não é, no entanto, disputar mercado com as emissoras convencionais públicas ou privadas. As emissoras de baixa potência são apenas uma opção a mais no universo midiático e surgem para suprir uma lacuna existente nas emissões tradicionais. Seu principal objetivo é proporcionar à comunidade a possibilidade de acesso aos meios de comunicação, além de uma programação de cunho social que não encontra espaço nas demais emissoras.
A Associação Brasileira de Rádios Comunitárias - ABRAÇO é criada em 1996 para organizar e representar as emissoras de baixa potência. Ela e outras entidades, como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, passam a organizar encontros sobre radiodifusão livre e comunitária e contribuem na elaboração das propostas de lei apresentadas no Congresso Nacional para a legalização das emissoras comunitárias. Em fevereiro de 1998, o Congresso Nacional aprova a Lei nº 9.612/98 instituindo o Serviço de Rádio Comunitária. Apesar de representar um avanço por finalmente regularizar o segmento, a lei impõe uma série de restrições que, segundo os representantes das rádios comunitárias, praticamente inviabilizam a atuação das emissoras:
- só permite a operação de emissoas com até 25 Watts de potência e antena inferior a 30 metros, o que restringe o alcance em áreas de alta densidade urbana ou cercadas por montanhas;
- autoriza o funcionamento de apenas uma rádio por vila ou bairro, sem levar em conta o tamanho da população;
- obriga todas as emissoras a operar na mesma freqüência, impedindo a coexistência de rádios comunitárias em bairros próximos;
- proíbe a formação de redes;
- proíbe a propaganda.
A única forma de patrocínio permitida é o apoio cultural, o que dificulta a obtenção de recursos para a manutenção de equipamentos, compra de discos, produção de programas, pagamento de funcionários. As restrições legais à radiodifusão comunitária são o resultado da pressão da Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão - ABERT, patronal, sobre o governo e o Congresso. Desde meados da década de 1990, a ABERT desenvolve intensa campanha contra as rádios comunitárias temendo perder audiência e receita publicitária em um universo radiofônico cada vez maior e mais variado. O papel das rádios comunitárias não é, no entanto, disputar mercado com as emissoras convencionais públicas ou privadas. As emissoras de baixa potência são apenas uma opção a mais no universo midiático e surgem para suprir uma lacuna existente nas emissões tradicionais. Seu principal objetivo é proporcionar à comunidade a possibilidade de acesso aos meios de comunicação, além de uma programação de cunho social que não encontra espaço nas demais emissoras.
RÁDIOS COMUNITÁRIAS: REVOLUÇÃO NO AR
Por Márcia Detoni
Do topo das grandes favelas brasileiras aos pequenos municípios do semi-árido brasileiro, as rádios comunitárias estão modificando o panorama das comunicações no País. Os dados revelam um crescimento gigantesco, na última década, das transmissões de rádio em todo o País, restrito, até então, à programação das cerca de 3.500 emissoras privadas e públicas autorizadas a figurar no dial. Mas, mais que um salto numérico, o boom de emissoras comunitárias evidencia a redescoberta do potencial do rádio como meio de comunicação e de democratização da informação, um fenômeno que vem ocorrendo não só no Brasil, mas em todo o mundo em desenvolvimento.
Em plena era da Internet, a mais antiga das tecnologias de comunicação é o que há de mais revolucionário. Enquanto a maioria das pessoas do mundo ainda está longe de chegar perto de um computador, novas emissoras brotam em todos os cantos do mundo em desenvolvimento. À medida que as ditaduras caem e a democracia se fortalece, os governos flexibilizam a concessão de freqüências e a própria população se apodera do rádio como veículo de expressão de suas culturas e anseios, fazendo dele um instrumento de inclusão e de desenvolvimento local.
Infelizmente, como reconhece a própria ABRAÇO, a maioria das emissoras de baixa potência que se intitulam comunitárias no Brasil não cumpre um papel social. Elas têm, de maneira geral, um cunho religioso, eleitoral ou comercial e reproduzem a lógica e a programação das emissoras privadas. Tais distorções não invalidam, no entanto, a importância da regulamentação da radiodifusão comunitária no País. Ao contrário. A legislação precisa ser aperfeiçoada para que esse tipo de emissora cumpra, de fato, o papel a que se propõe. Uma verdadeira rádio comunitária, de acordo com a definição teórica, tem algumas características de programação e de gerenciamento que a diferenciam de forma significativa das emissoras comerciais e mesmo das emissoras públicas ou estatais:
* programação voltada para os problemas e realidades do bairro ou região, que valorize a cultura local e tenha um forte compromisso com a educação para a cidadania;
* participação direta da população ao microfone e na produção dos programas;
* participação da comunidade no gerenciamento e na definição dos programas da emissora por meio de assembléias coletivas;
* finalidade não-lucrativa.
Os recursos para o funcionamento da emissora são arrecadados através de apoio cultural e de contribuições da comunidade. Os estudiosos da radiodifusão comunitária tendem a ser rígidos na conceituação desse tipo de emissora, mas a AMARC (Associação Mundial das Rádios Comunitárias) adota um conceito flexível e mais próximo da realidade de suas afiliadas, muitas das quais não têm, por exemplo, o gerenciamento participativo ou dependem da venda de anúncios comerciais:
Quando uma rádio promove a participação dos cidadãos e defende seus interesses; quando responde aos gostos da maioria e faz do bom humor e da esperança sua primeira proposta; quando informa de forma veraz; quando ajuda a resolver os mil e um problemas da vida cotidiana; quando em seus programas se debatem todas as idéias e se respeitam todas as opiniões; quando se estimula a diversidade cultural e não a homogeneização mercantil; quando a mulher protagoniza a comunicação e não é apenas uma simples voz decorativa ou um anúncio publicitário; quando não se tolera nenhuma ditadura, nem sequer a musical imposta pelas gravadoras; quando a palavra de todos voa sem discriminação, sem censuras, essa é uma rádio comunitária.
Para o autor e pesquisador boliviano Alfonso Gumuncio Dragon, mesmo a mais precária das emissoras de baixa potência com uma programação totalmente musical inicia um processo de transformação em sua comunidade. Ela contribui para criar um sentimento de unidade, de solidariedade e de pertencimento, que é essencial ao desenvolvimento.
A presença de uma emissora comunitária mesmo que não totalmente participativa, tem um efeito imediato na população. Pequenas emissoras geralmente começam a transmitir música na maior parte do dia, tendo assim um impacto na identidade cultural e no orgulho da comunidade. O próximo passo, geralmente associado à programação musical, é transmitir anúncios e dedicatórias, que contribuem para o fortalecimento das relações sociais locais. Quando a estação cresce em experiência e qualidade, começa a produção local de programas sobre saúde ou educação. Isso contribui para a divulgação de informações sobre questões importantes que afetam a comunidade.
Um bom exemplo desse processo é a própria Rádio Favela FM, de Belo Horizonte, reconhecida internacionalmente por sua atuação comunitária. A emissora surgiu na década de 1980 com uma programação exclusivamente musical. Hoje, investe forte também em conteúdo e já ganhou dois prêmios da ONU por sua contribuição ao combate ao tráfico de drogas, à violência e ao racismo. Na Favela FM se ouve um pouco de tudo, desde debates sobre direitos humanos ou abuso sexual, até críticas ao governo e histórias infantis. Portanto, entre milhares de emissoras de baixa potência que hoje não se enquadram no conceito teórico e legal de rádio comunitária pode haver sementes que, se frutificadas, levarão a uma comunicação democrática e plural, que ofereça amplas possibilidades de expressão e desenvolvimento a suas comunidades.
Cabe a associações como a AMARC e a ABRAÇO, às organizações não-governamentais e às universidades contribuir com esse processo, ajudando na capacitação das emissoras comunitárias, para que, em médio prazo, possam vir a pôr no ar uma programação criativa, com relevância de conteúdo e qualidade técnica.
Do topo das grandes favelas brasileiras aos pequenos municípios do semi-árido brasileiro, as rádios comunitárias estão modificando o panorama das comunicações no País. Os dados revelam um crescimento gigantesco, na última década, das transmissões de rádio em todo o País, restrito, até então, à programação das cerca de 3.500 emissoras privadas e públicas autorizadas a figurar no dial. Mas, mais que um salto numérico, o boom de emissoras comunitárias evidencia a redescoberta do potencial do rádio como meio de comunicação e de democratização da informação, um fenômeno que vem ocorrendo não só no Brasil, mas em todo o mundo em desenvolvimento.
Em plena era da Internet, a mais antiga das tecnologias de comunicação é o que há de mais revolucionário. Enquanto a maioria das pessoas do mundo ainda está longe de chegar perto de um computador, novas emissoras brotam em todos os cantos do mundo em desenvolvimento. À medida que as ditaduras caem e a democracia se fortalece, os governos flexibilizam a concessão de freqüências e a própria população se apodera do rádio como veículo de expressão de suas culturas e anseios, fazendo dele um instrumento de inclusão e de desenvolvimento local.
Infelizmente, como reconhece a própria ABRAÇO, a maioria das emissoras de baixa potência que se intitulam comunitárias no Brasil não cumpre um papel social. Elas têm, de maneira geral, um cunho religioso, eleitoral ou comercial e reproduzem a lógica e a programação das emissoras privadas. Tais distorções não invalidam, no entanto, a importância da regulamentação da radiodifusão comunitária no País. Ao contrário. A legislação precisa ser aperfeiçoada para que esse tipo de emissora cumpra, de fato, o papel a que se propõe. Uma verdadeira rádio comunitária, de acordo com a definição teórica, tem algumas características de programação e de gerenciamento que a diferenciam de forma significativa das emissoras comerciais e mesmo das emissoras públicas ou estatais:
* programação voltada para os problemas e realidades do bairro ou região, que valorize a cultura local e tenha um forte compromisso com a educação para a cidadania;
* participação direta da população ao microfone e na produção dos programas;
* participação da comunidade no gerenciamento e na definição dos programas da emissora por meio de assembléias coletivas;
* finalidade não-lucrativa.
Os recursos para o funcionamento da emissora são arrecadados através de apoio cultural e de contribuições da comunidade. Os estudiosos da radiodifusão comunitária tendem a ser rígidos na conceituação desse tipo de emissora, mas a AMARC (Associação Mundial das Rádios Comunitárias) adota um conceito flexível e mais próximo da realidade de suas afiliadas, muitas das quais não têm, por exemplo, o gerenciamento participativo ou dependem da venda de anúncios comerciais:
Quando uma rádio promove a participação dos cidadãos e defende seus interesses; quando responde aos gostos da maioria e faz do bom humor e da esperança sua primeira proposta; quando informa de forma veraz; quando ajuda a resolver os mil e um problemas da vida cotidiana; quando em seus programas se debatem todas as idéias e se respeitam todas as opiniões; quando se estimula a diversidade cultural e não a homogeneização mercantil; quando a mulher protagoniza a comunicação e não é apenas uma simples voz decorativa ou um anúncio publicitário; quando não se tolera nenhuma ditadura, nem sequer a musical imposta pelas gravadoras; quando a palavra de todos voa sem discriminação, sem censuras, essa é uma rádio comunitária.
Para o autor e pesquisador boliviano Alfonso Gumuncio Dragon, mesmo a mais precária das emissoras de baixa potência com uma programação totalmente musical inicia um processo de transformação em sua comunidade. Ela contribui para criar um sentimento de unidade, de solidariedade e de pertencimento, que é essencial ao desenvolvimento.
A presença de uma emissora comunitária mesmo que não totalmente participativa, tem um efeito imediato na população. Pequenas emissoras geralmente começam a transmitir música na maior parte do dia, tendo assim um impacto na identidade cultural e no orgulho da comunidade. O próximo passo, geralmente associado à programação musical, é transmitir anúncios e dedicatórias, que contribuem para o fortalecimento das relações sociais locais. Quando a estação cresce em experiência e qualidade, começa a produção local de programas sobre saúde ou educação. Isso contribui para a divulgação de informações sobre questões importantes que afetam a comunidade.
Um bom exemplo desse processo é a própria Rádio Favela FM, de Belo Horizonte, reconhecida internacionalmente por sua atuação comunitária. A emissora surgiu na década de 1980 com uma programação exclusivamente musical. Hoje, investe forte também em conteúdo e já ganhou dois prêmios da ONU por sua contribuição ao combate ao tráfico de drogas, à violência e ao racismo. Na Favela FM se ouve um pouco de tudo, desde debates sobre direitos humanos ou abuso sexual, até críticas ao governo e histórias infantis. Portanto, entre milhares de emissoras de baixa potência que hoje não se enquadram no conceito teórico e legal de rádio comunitária pode haver sementes que, se frutificadas, levarão a uma comunicação democrática e plural, que ofereça amplas possibilidades de expressão e desenvolvimento a suas comunidades.
Cabe a associações como a AMARC e a ABRAÇO, às organizações não-governamentais e às universidades contribuir com esse processo, ajudando na capacitação das emissoras comunitárias, para que, em médio prazo, possam vir a pôr no ar uma programação criativa, com relevância de conteúdo e qualidade técnica.
Monday, September 12, 2005
Fidelidade dos leitores e anunciantes garantirá crescimento da imprensa de bairro
"... uma parceria de mais de 20 anos com os jornais comunitários, que mesmo com muitas dificuldades comerciais, e até mesmo operando no vermelho, continuam resistindo."
"No início dos anos 90, ZH fez o mesmo e pouco depois desistiu do projeto, sem consultar a comunidade, deixando apenas a frustração de não ter levado a cabo as promessas editoriais."
Por Beatriz Dornelles
O jornal Zero Hora surpreendeu a todos, jornalistas e comunidades de bairro, ao anunciar que estaria lançando em agosto quatro cadernos de bairro: no dia 5, Bom Fim (mais Santana e parte de Rio Branco); no dia 12, Moinhos de Vento (mais Auxiliadora. Independência, Floresta e parte de Rio Branco); no dia 19, Bela Vista (mais Mont' Serrat, Três Figueiras e Boa Vista) e dia 26 Zona Sul (Ipanema. Tristeza, Sétimo Céu, Assunção e Vila Conceição). Em entrevista ao site Coletiva.Net, o presidente da Associação dos Jornais de Bairro e Segmentados de Porto Alegre -Rede Jornal, Roberto Corrêa Gomes, declarou que estranhou a iniciativa de ZH, já que todos os bairros em que serão lançados os cadernos já têm jornais sólidos, com circulação plena e estão totalmente envolvidos com as regiões representadas.
O estranhamento do presidente não é à toa. Já no inicio dos anos 90, a Zero Hora fez a mesma coisa e poucos meses depois desistiu do projeto, sem nenhuma consulta à comunidade, deixando apenas a frustração de não ter levado a cabo as promessas editoriais realizadas antes do lançamento do projeto. Ou seja, não houve nenhum comprometimento por parte de Zero Hora com os problemas sociais e reivindicações das diversas comunidades de Porto Alegre. Nesta segunda investida, apresentada ao público no dia 5 de agosto, ZH destacou apenas um repórter para realizar as reportagens e acompanhar as atividades e reuniões das quatro áreas. O mesmo profissional precisa fazer as fotografias, pois não foram designados fotógrafos para a cobertura de fatos dos bairros. Há, ainda, um editor e um diagramador. As mesmas áreas contam com a presença de cerca de 20 jornalistas dos jornais de bairro que circulam nas regiões selecionadas pela Zero Hora.
Esta postura nos leva a acreditar que o objetivo deste jornal e prioritariamente comercial. Tal julgamento baseia-se também numa análise editorial dos cadernos de Zero Hora. Eles não apresentam nenhuma novidade editorial, ao contrário, copia o que já está sendo praticado pêlos jornais de bairro de Porto Alegre. Aliás, com tantos profissionais competentes e criativos, não haveria necessidade de repetir as propostas editorias dos jornais já existentes.
Por exemplo, praticamente todos os jornais de bairro, e alguns segmentados, há mais de 20 anos têm seções para contar a história das ruas, praças e prédios do local. Desde os anos 90, os jornais de bairro ampliaram a aproximação com as associações de moradores, com os lideres comunitários e com a população em geral.
A seção de cartas é uma tradição em praticamente todos os jornais em circulação. Entrevista com lideranças, artistas, empresários. trabalhadores do bairro foi uma das primeiras propostas postas em prática pelo jornal Oi!, no Menino Deus. O tema envolvendo o meio ambiente tem sido uma luta constante do Já, Folha 3, Bela Vista, Jorna-lecão. Fala! São João, além de todos os outros que também dão ampla cobertura aos movimentos que envolvem o setor.
As atividades comunitárias da Brigada Militar foram acompanhadas desde o inicio (década de 90) por todos os jornais de bairro. Seções dirigidas a crianças e adolescentes também são iniciativas de alguns jornais de bairro, destacando-se o Folha 3, que desde suas primeiras edições dedica uma página para os adolescentes.
Divulgação de diferentes cultos e de religiões faz parte da pauta mensal de todos os jornais, bem como a cobertura de esporte local. Casamentos, batizados e mortes são temas de alguns jornais de bairro, há anos, como é o caso do Destak e do Zona Norte. Também a culinária ou gastronomia é um assunto que faz parte da tradição dos jornais.
Sendo esses os temas abordados pêlos cadernos de bairro de Zero Hora, não há nenhuma novidade apresentada, apenas uma cópia do que já é feito pêlos tradicionais jornais de bairro de Porto Alegre. A grande diferença está no fato dos jornalistas da imprensa de bairro estarem totalmente integrados nas atividades dos moradores dos bairros onde circulam e os profissionais de Zero Hora não terem nenhum afinidade com a vida comunitária dos bairros.
Não se pode deixar de destacar, também, que os cadernos de Zero Hora, que têm tabela de preços exclusiva, estão sendo comercializados com base nos preços dos jornais de bairro. Assim, concluímos que a motivação de Zero Hora para cobrir os bairros é comercial. Ou seja, ela pretende "conquistar" os anunciantes que tradicionalmente anunciam na imprensa de bairro. Essa postura é altamente danosa para comunidade. Por isso acredito que os 34 jornais de bairro de Porto Alegre mais os cerca de 20 jornais segmentados devem fazer uma campanha de esclarecimento, de forma que a comunidade e os anunciantes tenham elementos para se posicionar: ou abandonam uma parceria de mais de 20 anos com os jornais comunitários para apoiar uma novidade que, se apresentar dificuldades comerciais, pode acabar a qualquer momento, ou continuam apoiando a mídia comunitária, que mesmo com muitas dificuldades comerciais e até mesmo operando no vermelho continuam resistindo. O que não pode ser ignorado é a ganância e a concorrência desleal, praticada pela imprensa de massa, pois os pequenos jornais comunitários não contam com nenhuma estrutura para enfrentar poderosas forças empresariais, a não ser com a lealdade dos moradores e a confiança dos anunciantes. Esperamos que estes sejam fiéis ao trabalho desenvolvido pêlos jornais de bairro ao longo dos últimos 20 anos.
Jornalista, professora com Doutorado em Jornalismo pela ECA/USP. c pesquisadora do Programa de Pós-Grauuaçâo da Famecos/PUCRS
Friday, September 02, 2005
Voluntário ou Obrigatório: O Balanço Social
A idéia da responsabilidade social não é nova, mas nos anos recentes tem contagiado as empresas. É cada vez maior o número de empresas que apresentam o Balanço Social por livre iniciativa. Uma das razões é a necessidade do setor privado de se aproximar dos clientes e conseqüentemente da comunidade local. Um dos caminhos para isso é abrir os olhos do mercado e apontar o que cada um pode fazer pelo social. O Balanço Social é isto mostrar com transparência o que faz cada um.
Neste aspecto as grandes empresas têm papel fundamental, pois representam os grandes investimentos, as grandes compras e a grande parcela dos consumidores. O Banco do Brasil é um exemplo desse papel. Sendo uma instituição que publica o seu Balanço, ele pode cobrar também dos seus fornecedores uma postura social diferenciada. "Existe entre empresas uma cadeia de relacionamento, é óbvio que se começar a colocar exigências isso vai mudar", explica o gerente da área de relação com o investidor do Banco do Brasil, Gilberto Lourenço.
Para não perder o trem da história o Congresso Nacional quer legislar sobre o assunto. Em Projeto de Lei, o senador, Ney Suassuna, quer uma prestação de contas sociais obrigatória por parte das empresas. Pelo projeto, junto a Declaração do Imposto de Renda, as empresas estariam obrigadas a declarar, em documento separado, o que investiu em patrocínios culturais, científicos e esportivos. "Isso tudo daria um maior controle por parte da sociedade dos impostos pagos ao governo, ao mesmo tempo em que valorizaria a própria empresa junto à sociedade", acredita Ney Suassuna. Para Gilberto Lourenço do BB, a obrigatoriedade de declarar ações sociais pode se tornar burocrática. "Questão social independe da lei, sociedade já se antecipou", conclui o gerente do banco.
Na verdade, assim como o Balanço Social, a idéia de uma legislação sobre o assunto não é nova. Desde 1977 a França tornou obrigatória a realização periódica de um Balanço.
No es nuevo el concepto de responsabilidad social, pero sólo recientemente las empresas han adherido a él. Gerisse cada vez más el número de empresas que presentan su Balance Social expontaneamente. Aproximarse a sus clientes y tener contacto más direto con la comunidad local, son razones para este comportamiento. Un camino directo para el mismo es abrirle los ojos al mercado e indicarle a cada uno qué puede hacer por 10 social. Esto es Balance Social, mostrar con transparencia 10 que cada uno hace.
En este aspecto las grandes empresas desempenan un rol preponderante, ya que representan las grandes inversiones, grandes compras y grandes fajas de consumidores. EI Banco del Brasil es un claro ejemplo de ese papel. Por tratarse de entidad oficial puede exigir de sus proveedores una postura social diferente. "Las empresas están atadas por eslabones en sus relaciones, y claro está, comenzando a exigir la situación tendrá que cambiar", comenta el gerente del área de relaciones con los inversores del Banco del Brasil, Gilberto Lourenço.
Para estar acorde con el momento el Gongreso Nacional quiere legislar sobre el asunto. Existe un Proyecto de Ley, presentado por el senador Ney Suassuna, obligando a las empresas a una rendición de cuentas sociares. Según el proyecto, las empresas en ocasião de la presentación de su Declaración de Impuesto a la Renta, se obligarían a declarar, por separado, las inversiones en patrocínios culturales, científicos y deportivos. "Tendría así la sociedad mecanismo de control sobre los impuestos pagados al gobierno, a la vez que se valorizaría la propia empresa ante ella", confía el Senador. Gilberto Lourenço dei BB, considera que esta obligatoriedad puede hacerse burocrática. "La cuestión social no depende de leyes, la sociedad llegó primero.
No Brasil a utilização do Balanço é mais recente. Mesmo assim, algumas iniciativas demonstraram a preocupação com.o assunto já na década de 80. a Balanço Social da Nitrofértil, empresa estatal situada na Bahia, realizado em 1984, é considerado o primeiro documento brasileiro do gênero, que carrega o nome de Balanço Social. No mesmo período, estava sendo realizado o Balanço do Sistema Telebras, publicado em meados da década de 80. Em 1988 surgia também a Fundação Banco do Brasil, que atualmente é um dos pontos mais fortes no Balanço do banco. É a fundação, por exemplo, responsável pelo projeto BBeducar, que já alfabetizou mais de 60 mil jovens e adultos com ajuda de voluntários e instrutores do BB.
Sobre a discussão em torno de uma lei para o Balanço Social existe uma unanimidade, as empresas terem saído na frente já é um tempo em que valorizaria a bom sinal, se a sociedade cobrar esse tipo de atitude antes que a lei o faça, será melhor ainda. A preocupação do Terceiro Setor com uma lei que obrigue a declaração do Balanço Social tem motivos para existir. Afinal, a história do país mostra que umas leis pegam, outras não. Para Ney Suassuna não há nada a perder com a obrigatoriedade do balanço, apenas a ganhar. A pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, Ana Peliano, concorda com o gerente do Banco do Brasil. Ela acredita que o mais importante é uma cobrança direta da sociedade. a que, na opinião da pesquisadora, já está acontecendo. Seja qual for o caminho do projeto em discussão no senado, espera-se que a vitoriosa seja a sociedade.
Neste aspecto as grandes empresas têm papel fundamental, pois representam os grandes investimentos, as grandes compras e a grande parcela dos consumidores. O Banco do Brasil é um exemplo desse papel. Sendo uma instituição que publica o seu Balanço, ele pode cobrar também dos seus fornecedores uma postura social diferenciada. "Existe entre empresas uma cadeia de relacionamento, é óbvio que se começar a colocar exigências isso vai mudar", explica o gerente da área de relação com o investidor do Banco do Brasil, Gilberto Lourenço.
Para não perder o trem da história o Congresso Nacional quer legislar sobre o assunto. Em Projeto de Lei, o senador, Ney Suassuna, quer uma prestação de contas sociais obrigatória por parte das empresas. Pelo projeto, junto a Declaração do Imposto de Renda, as empresas estariam obrigadas a declarar, em documento separado, o que investiu em patrocínios culturais, científicos e esportivos. "Isso tudo daria um maior controle por parte da sociedade dos impostos pagos ao governo, ao mesmo tempo em que valorizaria a própria empresa junto à sociedade", acredita Ney Suassuna. Para Gilberto Lourenço do BB, a obrigatoriedade de declarar ações sociais pode se tornar burocrática. "Questão social independe da lei, sociedade já se antecipou", conclui o gerente do banco.
Na verdade, assim como o Balanço Social, a idéia de uma legislação sobre o assunto não é nova. Desde 1977 a França tornou obrigatória a realização periódica de um Balanço.
No es nuevo el concepto de responsabilidad social, pero sólo recientemente las empresas han adherido a él. Gerisse cada vez más el número de empresas que presentan su Balance Social expontaneamente. Aproximarse a sus clientes y tener contacto más direto con la comunidad local, son razones para este comportamiento. Un camino directo para el mismo es abrirle los ojos al mercado e indicarle a cada uno qué puede hacer por 10 social. Esto es Balance Social, mostrar con transparencia 10 que cada uno hace.
En este aspecto las grandes empresas desempenan un rol preponderante, ya que representan las grandes inversiones, grandes compras y grandes fajas de consumidores. EI Banco del Brasil es un claro ejemplo de ese papel. Por tratarse de entidad oficial puede exigir de sus proveedores una postura social diferente. "Las empresas están atadas por eslabones en sus relaciones, y claro está, comenzando a exigir la situación tendrá que cambiar", comenta el gerente del área de relaciones con los inversores del Banco del Brasil, Gilberto Lourenço.
Para estar acorde con el momento el Gongreso Nacional quiere legislar sobre el asunto. Existe un Proyecto de Ley, presentado por el senador Ney Suassuna, obligando a las empresas a una rendición de cuentas sociares. Según el proyecto, las empresas en ocasião de la presentación de su Declaración de Impuesto a la Renta, se obligarían a declarar, por separado, las inversiones en patrocínios culturales, científicos y deportivos. "Tendría así la sociedad mecanismo de control sobre los impuestos pagados al gobierno, a la vez que se valorizaría la propia empresa ante ella", confía el Senador. Gilberto Lourenço dei BB, considera que esta obligatoriedad puede hacerse burocrática. "La cuestión social no depende de leyes, la sociedad llegó primero.
No Brasil a utilização do Balanço é mais recente. Mesmo assim, algumas iniciativas demonstraram a preocupação com.o assunto já na década de 80. a Balanço Social da Nitrofértil, empresa estatal situada na Bahia, realizado em 1984, é considerado o primeiro documento brasileiro do gênero, que carrega o nome de Balanço Social. No mesmo período, estava sendo realizado o Balanço do Sistema Telebras, publicado em meados da década de 80. Em 1988 surgia também a Fundação Banco do Brasil, que atualmente é um dos pontos mais fortes no Balanço do banco. É a fundação, por exemplo, responsável pelo projeto BBeducar, que já alfabetizou mais de 60 mil jovens e adultos com ajuda de voluntários e instrutores do BB.
Sobre a discussão em torno de uma lei para o Balanço Social existe uma unanimidade, as empresas terem saído na frente já é um tempo em que valorizaria a bom sinal, se a sociedade cobrar esse tipo de atitude antes que a lei o faça, será melhor ainda. A preocupação do Terceiro Setor com uma lei que obrigue a declaração do Balanço Social tem motivos para existir. Afinal, a história do país mostra que umas leis pegam, outras não. Para Ney Suassuna não há nada a perder com a obrigatoriedade do balanço, apenas a ganhar. A pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, Ana Peliano, concorda com o gerente do Banco do Brasil. Ela acredita que o mais importante é uma cobrança direta da sociedade. a que, na opinião da pesquisadora, já está acontecendo. Seja qual for o caminho do projeto em discussão no senado, espera-se que a vitoriosa seja a sociedade.
Atração por escândalos
Escandalosa. Ser ou não ser?
Eis a questão que desafia a imprensa européia. Na Inglaterra, dos tablóides
sensacionalistas, apesar dos ventos contrários que jornais como o Sun vêm enfrentando, a imprensa sensacionalista que explora escândalos - de preferência sexuais -. fofocas, faits divers e entretenimento continua com tiragens milionárias. O SW1, por exemplo, vende 3,7 milhões de exemplares. Já vendeu quatro milhões, mas os excessos cometidos na cobertura da morte da princesa Diana parecem ter deflagrado um certo descontentamento do público com a imprcnsa sensacionalista.
Este tipo de imprensa se beneficia das leis extremamente liberais existentes na Inglaterra e de urna interpretação bem ampla do que seria um código de ética por parte das entidades profissionais que congregam os jornalistas ingleses. Os leitores atraídos pelos jornais populares são basicamente jovens operários e funcionários não qualificados. principalmente do sexo masculino. Ainda não se pode falar em crise, mas o público da imprensa sensacionalista vem diminuindo, preferindo ver mais televisão ou mesmo comprar os jornais tradicionais que dedicam cada vez mais espaço para assuntos populares, esportes e entretenimento. A família real é um dos alvos prediletos da imprensa popular e são poucos os instrumentos jurídicos com que ela conta para proteger sua privacidade.
Na França, a situação é totalmente diferente. Leis muitas rígidas e um código de ética extremamente rigoroso garantem a privacidade dos cidadãos. A diferença entre o público e o privado é claramente delimitada e respeitada e as penas para quem cruza indevidamente a fronteira são pesadas, tanto financeira quanto juridicamente. Durante o governo de François Mitterrand. por exemplo, toda a imprensa francesa sabia da existência de uma filha, Masarine, que o presidente tinha tido de uma outra relação. No entanto, isto só foi noticiado, quando Mitterrand enviou claros sinais que não queria mais manter o segredo. No enterro do presidente morto em 1996 vitimado por complicações causadas por um câncer, as duas famílias participaram juntas de todas as solenidades oficiais. Aliás, na morte do presidente,a imprensa francesa deu outra manifestação de civilidade. Apesar de ser do conhecimento de todos que Mitterrand agonizava em seu apartamento particular. nenhuma equipe de jornalistas dava plantão diante do edifício. A notícia da morte foi divulgada oficialmente pelo presidente Jacques Chirac.
Tanta civilidade não impediu. no entanto que no velório privado alguém tivesse feito uma foto do corpo do presidente com uma minicâmera e a vendesse para o Paris Match que a publicou. Foi um escândalo. (E.S.)
Eis a questão que desafia a imprensa européia. Na Inglaterra, dos tablóides
sensacionalistas, apesar dos ventos contrários que jornais como o Sun vêm enfrentando, a imprensa sensacionalista que explora escândalos - de preferência sexuais -. fofocas, faits divers e entretenimento continua com tiragens milionárias. O SW1, por exemplo, vende 3,7 milhões de exemplares. Já vendeu quatro milhões, mas os excessos cometidos na cobertura da morte da princesa Diana parecem ter deflagrado um certo descontentamento do público com a imprcnsa sensacionalista.
Este tipo de imprensa se beneficia das leis extremamente liberais existentes na Inglaterra e de urna interpretação bem ampla do que seria um código de ética por parte das entidades profissionais que congregam os jornalistas ingleses. Os leitores atraídos pelos jornais populares são basicamente jovens operários e funcionários não qualificados. principalmente do sexo masculino. Ainda não se pode falar em crise, mas o público da imprensa sensacionalista vem diminuindo, preferindo ver mais televisão ou mesmo comprar os jornais tradicionais que dedicam cada vez mais espaço para assuntos populares, esportes e entretenimento. A família real é um dos alvos prediletos da imprensa popular e são poucos os instrumentos jurídicos com que ela conta para proteger sua privacidade.
Na França, a situação é totalmente diferente. Leis muitas rígidas e um código de ética extremamente rigoroso garantem a privacidade dos cidadãos. A diferença entre o público e o privado é claramente delimitada e respeitada e as penas para quem cruza indevidamente a fronteira são pesadas, tanto financeira quanto juridicamente. Durante o governo de François Mitterrand. por exemplo, toda a imprensa francesa sabia da existência de uma filha, Masarine, que o presidente tinha tido de uma outra relação. No entanto, isto só foi noticiado, quando Mitterrand enviou claros sinais que não queria mais manter o segredo. No enterro do presidente morto em 1996 vitimado por complicações causadas por um câncer, as duas famílias participaram juntas de todas as solenidades oficiais. Aliás, na morte do presidente,a imprensa francesa deu outra manifestação de civilidade. Apesar de ser do conhecimento de todos que Mitterrand agonizava em seu apartamento particular. nenhuma equipe de jornalistas dava plantão diante do edifício. A notícia da morte foi divulgada oficialmente pelo presidente Jacques Chirac.
Tanta civilidade não impediu. no entanto que no velório privado alguém tivesse feito uma foto do corpo do presidente com uma minicâmera e a vendesse para o Paris Match que a publicou. Foi um escândalo. (E.S.)
Monday, July 11, 2005
Considerações sobre o colunismo no Brasil
A COLUNA[1]
A coluna é uma espécie de área privativa com regulamento próprio onde se misturam em intimidade, sobre assuntos gerais ou temas específicos, notícia e comentário, entrevista e interpretação, humorismo e gravidade, tudo em textos curtos, em forma de pílulas, e com certa liberdade de expressão. É o dado que faltou ao grande noticiário, o lado pitoresco do acontecimento, o detalhe curioso de uma decisão.
A idéia de delimitar a coluna e dar-lhe essa característica surgiu simultaneamente no fim do século 19, nos Estados Unidos, com Eugene Field, no Daily News, de Chicago, e Ambrose Bierce, no Examiner, de São Francisco, como reação ao rigor na separação e emprego da notícia e do comentário, e à camisa de força dos editoriais. O colunismo, como ficou conhecido, teve aceitação imediata na imprensa brasileira.
A sua receptividade entre os brasileiros também foi favorecida pelo cansaço dos leitores com os longos comentários, e não só pó isso como pelo toque de humor e malícia que muitos profissionais souberam dar à redação dos pequenos textos. Hermano Alves (colunista) disse que “nada melhor do que uma pitada de malícia para dar sabor a uma coluna”.
Paradoxalmente, o êxito de uma coluna concorre, não raro, entre nós, para sua desfiguração. Local de fácil comunicação transforma-se em abridora de caminhos ou salão de sondagem de determinados grupos. Em outros momentos, é a vala comum de notícias menores de interesse da direção da empresa, de suas relações, das agências de relações públicas e publicidade, e dos amigos do colunista. A constância das pessoas acaba, às vezes, por triunfar sobre a ética profissional e, entre duas notícias qualificadas, o leitor é obrigado a consumir a promoção de um cliente importante do jornal.
O colunista disputa com o repórter o prazer da notícia em primeira mão, com o redator a capacidade de dizer o máximo com o mínimo de palavras e com o comentarista a sutileza de espírito, a perspicácia e a finura. Tem que ser um jornalista experiente no trato da entrevista e com ampla possibilidade de circulação em todas as áreas.
O campo de ação do colunista são os grandes centros de decisão, os bastidores, as reuniões sociais, os acontecimentos mundanos. Muito material surgiu também da colaboração entre colegas da mesma ou de diferentes empresas.
O fato de reunir toda uma soma de poder em suas mãos e de comentar temas os mais variados, como um especialista polivalente, tem causado apreciações negativas ao colunista, como esta feita por uma autoridade norte-americana:
De todas as fantásticas figuras que se têm levantado do pântano da confusão, desde a Grande Guerra, a mais fútil e, ao mesmo tempo, a mais pretensiosa, é a do profundo pensador de cabelo empastado, o colunista ou comentarista que sabe todas as respostas de improviso e pode resolver grandes problemas com absoluta confiança, três e até seis dias da semana.
Mesmo John Hohenberg, que elogia alguns colunistas por sua capacidade de iluminar as notícias e trazer algum esclarecimento diz que “alguns são modestos, mas outros insuportavelmente arrogantes ao pretenderem modelar a opinião pública”.
Não é raro o colunista tornar-se mais importante do que o próprio jornal e por esse motivo um dos grandes matutinos do Rio de janeiro, o Correio da Manhã, hoje extinto, sempre se negou a introduzir qualquer coluna com as características que marcam este gênero no jornalismo.
Em que pesem, porém, as críticas feitas aos colunistas, o fato é que a coluna vive uma fase de prestígio graças ao volume de informação que fornece à leveza e ao tamanho reduzido dos textos.
[1] Texto de Luiz Amaral, em “Jornalismo, matéria de primeira página”, ed. Tempo Brasileiro, 1986.
A coluna é uma espécie de área privativa com regulamento próprio onde se misturam em intimidade, sobre assuntos gerais ou temas específicos, notícia e comentário, entrevista e interpretação, humorismo e gravidade, tudo em textos curtos, em forma de pílulas, e com certa liberdade de expressão. É o dado que faltou ao grande noticiário, o lado pitoresco do acontecimento, o detalhe curioso de uma decisão.
A idéia de delimitar a coluna e dar-lhe essa característica surgiu simultaneamente no fim do século 19, nos Estados Unidos, com Eugene Field, no Daily News, de Chicago, e Ambrose Bierce, no Examiner, de São Francisco, como reação ao rigor na separação e emprego da notícia e do comentário, e à camisa de força dos editoriais. O colunismo, como ficou conhecido, teve aceitação imediata na imprensa brasileira.
A sua receptividade entre os brasileiros também foi favorecida pelo cansaço dos leitores com os longos comentários, e não só pó isso como pelo toque de humor e malícia que muitos profissionais souberam dar à redação dos pequenos textos. Hermano Alves (colunista) disse que “nada melhor do que uma pitada de malícia para dar sabor a uma coluna”.
Paradoxalmente, o êxito de uma coluna concorre, não raro, entre nós, para sua desfiguração. Local de fácil comunicação transforma-se em abridora de caminhos ou salão de sondagem de determinados grupos. Em outros momentos, é a vala comum de notícias menores de interesse da direção da empresa, de suas relações, das agências de relações públicas e publicidade, e dos amigos do colunista. A constância das pessoas acaba, às vezes, por triunfar sobre a ética profissional e, entre duas notícias qualificadas, o leitor é obrigado a consumir a promoção de um cliente importante do jornal.
O colunista disputa com o repórter o prazer da notícia em primeira mão, com o redator a capacidade de dizer o máximo com o mínimo de palavras e com o comentarista a sutileza de espírito, a perspicácia e a finura. Tem que ser um jornalista experiente no trato da entrevista e com ampla possibilidade de circulação em todas as áreas.
O campo de ação do colunista são os grandes centros de decisão, os bastidores, as reuniões sociais, os acontecimentos mundanos. Muito material surgiu também da colaboração entre colegas da mesma ou de diferentes empresas.
O fato de reunir toda uma soma de poder em suas mãos e de comentar temas os mais variados, como um especialista polivalente, tem causado apreciações negativas ao colunista, como esta feita por uma autoridade norte-americana:
De todas as fantásticas figuras que se têm levantado do pântano da confusão, desde a Grande Guerra, a mais fútil e, ao mesmo tempo, a mais pretensiosa, é a do profundo pensador de cabelo empastado, o colunista ou comentarista que sabe todas as respostas de improviso e pode resolver grandes problemas com absoluta confiança, três e até seis dias da semana.
Mesmo John Hohenberg, que elogia alguns colunistas por sua capacidade de iluminar as notícias e trazer algum esclarecimento diz que “alguns são modestos, mas outros insuportavelmente arrogantes ao pretenderem modelar a opinião pública”.
Não é raro o colunista tornar-se mais importante do que o próprio jornal e por esse motivo um dos grandes matutinos do Rio de janeiro, o Correio da Manhã, hoje extinto, sempre se negou a introduzir qualquer coluna com as características que marcam este gênero no jornalismo.
Em que pesem, porém, as críticas feitas aos colunistas, o fato é que a coluna vive uma fase de prestígio graças ao volume de informação que fornece à leveza e ao tamanho reduzido dos textos.
[1] Texto de Luiz Amaral, em “Jornalismo, matéria de primeira página”, ed. Tempo Brasileiro, 1986.
Friday, July 08, 2005
A liberdade de fazer
LE MONDE
Diplomatique
Exclusivo
Tendo interiorizado a lógica do capitalismo, a maior parte dos jornalistas adere alegremente às exigências do sistema. Age de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
Por Alain Accardo
Observador dos meios de comunicação deveria partir da premissa de que os jornalistas, em sua grande maioria, não estão maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro das empresas para as quais trabalham, em particular, e dos capitalistas, em geral. Se o jornalista age como “condicionador” daqueles a quem se dirige, não é pelo desejo de condiciona-los e sim por ser ele próprio condicionado, a um grau que ele, como a maioria na profissão, não percebe. Assim, cada jornalista, fazendo (ou não fazendo) espontaneamente o que quer, concorda espontaneamente com todos os demais. Pode-se dizer, com o poeta Robert Desnos, que obedecem à lógica do pelicano: “O pelicano bota um ovo bem branquinho/De onde sai, inevitavelmente/Um outro que faz tudo igualzinho”.
Os investidores e comerciantes que se apropriaram da parte essencial dos meios de comunicação não precisam ditar os jornalistas o que eles devem dizer ou mostrar. Não precisam violentar sua consciência, ou transforma-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais aceitaria tal coisa. Para garantir a melhor informação possível ao melhor dos mundos capitalistas, nada como deixar os jornalistas trabalharem livremente para ser mais exato, deixá-los acreditar que seu trabalho não obedece a nenhum outro imperativo, nenhum outro limite a não ser o das regras específicas do jogo aceito por todos. Deve-se confiar na “consciência profissional”. Assim, basta entregar as rédeas do poder nas relações aos homens e mulheres qualificados geralmente como “excelentes profissionais”, o que significa aqueles que nunca deixaram de compartilhar, explícita ou simplesmente, uma visão de mundo coincidente com a dos seus patrões. Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante um recrutamento de pessoal capaz de impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na kissa. Esse mecanismo começa a funcionar já nos cursos de jornalismo e prossegue, continuamente, nas redações.
Desse modo, os meios de comunicação estão seguramente amparados por uma rede na qual basta que cada um trabalhe “de acordo com seus sentimentos” para que trabalhe “como se deve”, ou seja, em defesa das normas e dos valores do modelo predominante. Assim se realiza o consenso entre uma direita em pane de idéias e uma esquerda que sofre da ruptura de um ideal.
No entanto, é preciso insistir no fato de que a eficácia de tal sistema repousa fundamentalmente na sinceridade e espontaneidade dos que nele investem, mesmo que esse investimento carregue uma certa dose de automistificação. Do jeito como é trabalhada, a informação jornalística é passível de muitas críticas e recriminações bem fundamentadas, entre elas a de limitar as idéias à problemática dominante, isto é, ao chamado pensamento único. Mas, se existe uma coisa que não se pode censurar nos jornalistas – salvo rara exceções – é a boa-fé com que realizam seu trabalho. Uma vez tendo assimilado perfeitamente a lógica do sistema, eles aceitam livremente aquilo em que são obrigados a acreditar. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
NEM HIPOCRISIA NEM FALTA DE CARÁTER
Se tivéssemos de resumir em poucas palavras a crença fundamental dos jornalistas, diríamos que eles acreditam sinceramente em um capitalismo com face humana, e têm absoluta certeza de que nessa crença não há nada de ideológico. Como ocorre com os atores de todos os campos sociais, a visão dos jornalistas se caracteriza por uma mescla de doses variadas de lucidez e ceticismo, de visto e de não-visto ou intrevisto.
PROFISSIONAIS COOPTADOS, IDEOLOGICAMENTE CONFIÁVEIS, IMPEDEM A ENTRADA DE RAPOSAS NO GALINHEIRO OU DE HEREGES
NA MISSA.
Conseguem ver com clareza, por exemplo, os inúmeros exemplos de desumanidade do sistema capitalista pelo mundo afora, mas se recusam a enxergar nisso um traço inerente à essência mesma do capitalismo, interpretando tais exemplos como simples acidentes. Falam de “disfunções”, de “desvios”, de “excessos”, de “ovelhas negras”, condenáveis certamente mas de que modo algum comprometeriam o sistema que tendem a defender espontaneamente.
Assim, por exemplo, fazem uma crítica sincera de abomináveis “excessos” no tratamento da informação-mercadoria, excessos motivados pela concorrência, pela obrigação de rentabilidade, pelo índice de audiência, em suma, pela lógica do mercado. Mas o fato de essa mesma lógica provocar um aumento maciço de estagiários nas redações, com um contingente cada vez maior de jovens jornalistas sub-remunerados e descartáveis, vergonhosamente explorados por seus patrões, não os comove absolutamente.
O campo jornalístico, como muitos outros, funciona graças a algo que, objetivamente, deve ser chamado de impostura, no sentido de o jornalista só poder fazer o que faz, ou seja, contribuir para a manutenção da ordem simbólica, fazendo de conta que não o faz, como se não seguisse outro princípio que não o da utilidade pública e do bem comum, da verdade e da justiça. Hipocrisia ou mau-caratismo? Nem uma coisa nem outra. Nenhum sistema pode funcionar maciça e deliberadamente com base na impostura intencional e permanente. É necessário que as pessoas acreditem no que estão fazendo e que assumam uma ideologia socialmente aceita que não pode se resumir, no caso, a proclamar cinicamente “viva o reino do dinheiro, abaixo o humanismo arcaico, vamos ficar ricos e os pobres que se danem!”, mas que consiste em acreditar, na maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja liberal, fora da qual não há salvação possível.
DEUS E O DIABO
Muito felizmente para os donos do dinheiro, é dessa forma que podem povoar os meios de comunicação que compraram, com pessoas inteligentes, competentes e sinceras, pessoalmente condicionadas a transfigurar a lei da selva do capitalismo com aquilo que chamam de “modernidade” ou “democracia de mercado”.
Mas as conclusões válidas para os meios de comunicação valem também para segmentos inteiros da estrutura social. O microcosmo jornalístico e, nesse sentido, um espaço privilegiado para a observação in vivo do que ocorre nos campos da produção e da difusão de bens simbólicos, cujo corpo profissional pertence, na sua quase totalidade, à classe média (atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação etc.).
Foi a classe média – sobretudo a nova pequena burguesia, mas não apenas ela – que, investindo a fundo nesse sistema, injetou-lhe a dose de humanidade, inteligência, imaginação, tolerância, psicologia, em suma, o suplemento de alma necessário para que pudesse passar da exploração selvagem do “como se deve” trabalho assalariado – que grassava antes ainda da Segunda Guerra Mundial – a formas aparentemente mais civilizadas e compatíveis com o aumento das aspirações democráticas.
A esse respeito pode-se dizer que a modernização do capitalismo consistiu em desenvolver métodos de “gestão dos recursos humanos” e de comunicação para camuflar os abusos patronais por meio de eufemismos e envolver psicologicamente os assalariados na sua própria exploração. Sem dúvida, tamanha colaboração resulta em diversos ganhos materiais e morais, no primeiro caso a garantia da subsistência e no segundo a sensação de uma certa importância e utilidade para seus semelhantes. O que não é pouco.
AS CRÍTICAS AO SISTEMA ESTÃO LONGE DE POR EM RISCO A LÓGICA DOMINANTE; SUSTENTAM APENAS UM LOGORRÉICO DEBATE QUE QUASE NUNCA TOCA O ESSENCIAL.
Mas acontece que, por uma dessas artimanhas objetivas de que a história está cheia, o trabalho que essas pessoas executam traz lucros maiores ao sistema e às castas feudais que o dominam, de modo que, pensando servir a Deus, servem ao diabo. Mas fazem na melhor das intenções, com a consciência tranqüila, porque quase tudo que possa pesar na consciência é automaticamente autocensurado ou transfigurado. No íntimo, eles têm, como diria Pascal, “uma vontade de crer que supera suas razões para duvidar”. Provavelmente, isso acontece porque os jornalistas dominam profissionalmente as tecnologias do fazer-ver e do fazer-saber. Daí resulta que a visão de seu próprio meio de trabalho seja mais nítida que em outras categorias da classe média, cuja postura objetiva consiste em nunca ser nem nunca fazer por completo o que elas mesmas pensam que são e fazem, numa constante auto-encenação em que procuram aumentar sua importância.
A BUSCA DA AFIRMAÇÃO
Se é verdade que nenhum jogo social pode se desenvolver sem que os atores aceitem, em parte ou totalmente, “contar-se histórias”, iludir a si mesmos e aos outros, temos de admitir que a classe média têm uma tendência especial a “fazer teatro”. Essa propensão, antes de tudo nascisista, à dramatização de sua existência está ligada ao fato de pertencerem a um espaço social intermediário entre os dois pólos, o dominador e o dominado. Todos os traços característicos da pequena burguesia resultam dessa posição ambígua entre o insatisfatório e o abundante, entre o ser e o não ser, num mundo em que o valor social se tornou diretamente proporcional ao grau de acumulação do capital em geral, e do nível econômico em particular. “Os menos aquinhoados”, como se diz pudicamente, dispõem de pouquíssimo para se preocupar em valorizar o que têm e o que são. Os mais privilegiados, ao contrário, possuem bens demais para precisar se valorizar oferecendo-se como espetáculo. Na classe média, mais do que nas outras, existir socialmente significa ser notado.
Mas essa busca interminável de auto-afirmação raramente produz resultados totalmente satisfatórios. Os pequeno burgueses (em todas as suas funções), por sua posição intermediária, geralmente são mais sensíveis à distância das posições superiores que às vantagens intrínsecas da posição ocupada. Como já notava Stendhal, “a grande aspiração é ascender à classe superior à sua, que faz de tudo para impedir sua ascenção a ela”. Nisso reside uma fonte de grande frustração e ressentimento, uma espécie de lugar propício à patologia do reconhecimento social, origem primeira de inúmeros casos de sofrimento existencial que poderiam ser reunidos sob a denominação de “síndrome de Emma Bovary e de Julien Sorel”. Sofrimento que aumenta em vez de diminuir, por ser estruturalmente programado e, portanto, refratário a qualquer terapia. Uma pesquisa sobre o jornalismo de base fornece eloqüentes exemplos desse relacionamento ambíguo, que é ao mesmo tempo deslumbrado e exasperado, amoroso e despeitado, arrogante e doloroso, dos dominadores-dominados desse entremeio social.
Temos o direito de pensar que o único meio de remediar tal situação seria a decisão clara de participarmos ativamente de uma ação coletiva de natureza política e social que virasse romper com a lógica do sistema. Tarefa difícil, que exige colocar em questão o inconsciente social da situação, isto é, tudo que foi pessoalmente no mais fundo de nós mesmos, todos os elos profundos, todas as adesões carnais por meio das quais os indivíduos “aderem” a um sistema que os engendrou e condicionou a fazer, de livre e espontânea vontade e às vezes com infinita alegria, o que espera que eles façam. Por exemplo, enfrentarem-se impiedosamente numa competição implacável por objetivos ilusórios e risíveis, cuja perseguição e conquista, no final das contas, não provam nada, salvo precisamente que se está muitíssimo bem condicionado.
Até agora, os membros da classe média, por estarem condicionados não apenas pelos meios de comunicação mas por toda a sua socialização, trataram de cultivar, com perseverança, seu sonho de ascensão social e suas esperanças de vitória pessoal num universo cujas carências, contradições e iniqüidades eles próprios são chamados a denunciar. Mas essas opiniões críticas, por se restringirem ao registro político (muitas vezes politiqueiro), e o voto “à esquerda” a que costumam estar associadas, longe de pôr em risco a lógica dominante, têm o efeito de otimizar o funcionamento de um sistema que, além de se reproduzir no essencial, pode também se vangloriar de manter, nos meios de fato, quase nunca toca o essencial.
Alain Accardo é professor de sociologia da Universidade de Bordeaux-III, co-autor de Jornalistes Précaires, Lê Mascaret, Bordeaux, 1998.
Diplomatique
Exclusivo
Tendo interiorizado a lógica do capitalismo, a maior parte dos jornalistas adere alegremente às exigências do sistema. Age de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
Por Alain Accardo
Observador dos meios de comunicação deveria partir da premissa de que os jornalistas, em sua grande maioria, não estão maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro das empresas para as quais trabalham, em particular, e dos capitalistas, em geral. Se o jornalista age como “condicionador” daqueles a quem se dirige, não é pelo desejo de condiciona-los e sim por ser ele próprio condicionado, a um grau que ele, como a maioria na profissão, não percebe. Assim, cada jornalista, fazendo (ou não fazendo) espontaneamente o que quer, concorda espontaneamente com todos os demais. Pode-se dizer, com o poeta Robert Desnos, que obedecem à lógica do pelicano: “O pelicano bota um ovo bem branquinho/De onde sai, inevitavelmente/Um outro que faz tudo igualzinho”.
Os investidores e comerciantes que se apropriaram da parte essencial dos meios de comunicação não precisam ditar os jornalistas o que eles devem dizer ou mostrar. Não precisam violentar sua consciência, ou transforma-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais aceitaria tal coisa. Para garantir a melhor informação possível ao melhor dos mundos capitalistas, nada como deixar os jornalistas trabalharem livremente para ser mais exato, deixá-los acreditar que seu trabalho não obedece a nenhum outro imperativo, nenhum outro limite a não ser o das regras específicas do jogo aceito por todos. Deve-se confiar na “consciência profissional”. Assim, basta entregar as rédeas do poder nas relações aos homens e mulheres qualificados geralmente como “excelentes profissionais”, o que significa aqueles que nunca deixaram de compartilhar, explícita ou simplesmente, uma visão de mundo coincidente com a dos seus patrões. Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante um recrutamento de pessoal capaz de impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na kissa. Esse mecanismo começa a funcionar já nos cursos de jornalismo e prossegue, continuamente, nas redações.
Desse modo, os meios de comunicação estão seguramente amparados por uma rede na qual basta que cada um trabalhe “de acordo com seus sentimentos” para que trabalhe “como se deve”, ou seja, em defesa das normas e dos valores do modelo predominante. Assim se realiza o consenso entre uma direita em pane de idéias e uma esquerda que sofre da ruptura de um ideal.
No entanto, é preciso insistir no fato de que a eficácia de tal sistema repousa fundamentalmente na sinceridade e espontaneidade dos que nele investem, mesmo que esse investimento carregue uma certa dose de automistificação. Do jeito como é trabalhada, a informação jornalística é passível de muitas críticas e recriminações bem fundamentadas, entre elas a de limitar as idéias à problemática dominante, isto é, ao chamado pensamento único. Mas, se existe uma coisa que não se pode censurar nos jornalistas – salvo rara exceções – é a boa-fé com que realizam seu trabalho. Uma vez tendo assimilado perfeitamente a lógica do sistema, eles aceitam livremente aquilo em que são obrigados a acreditar. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrar. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.
NEM HIPOCRISIA NEM FALTA DE CARÁTER
Se tivéssemos de resumir em poucas palavras a crença fundamental dos jornalistas, diríamos que eles acreditam sinceramente em um capitalismo com face humana, e têm absoluta certeza de que nessa crença não há nada de ideológico. Como ocorre com os atores de todos os campos sociais, a visão dos jornalistas se caracteriza por uma mescla de doses variadas de lucidez e ceticismo, de visto e de não-visto ou intrevisto.
PROFISSIONAIS COOPTADOS, IDEOLOGICAMENTE CONFIÁVEIS, IMPEDEM A ENTRADA DE RAPOSAS NO GALINHEIRO OU DE HEREGES
NA MISSA.
Conseguem ver com clareza, por exemplo, os inúmeros exemplos de desumanidade do sistema capitalista pelo mundo afora, mas se recusam a enxergar nisso um traço inerente à essência mesma do capitalismo, interpretando tais exemplos como simples acidentes. Falam de “disfunções”, de “desvios”, de “excessos”, de “ovelhas negras”, condenáveis certamente mas de que modo algum comprometeriam o sistema que tendem a defender espontaneamente.
Assim, por exemplo, fazem uma crítica sincera de abomináveis “excessos” no tratamento da informação-mercadoria, excessos motivados pela concorrência, pela obrigação de rentabilidade, pelo índice de audiência, em suma, pela lógica do mercado. Mas o fato de essa mesma lógica provocar um aumento maciço de estagiários nas redações, com um contingente cada vez maior de jovens jornalistas sub-remunerados e descartáveis, vergonhosamente explorados por seus patrões, não os comove absolutamente.
O campo jornalístico, como muitos outros, funciona graças a algo que, objetivamente, deve ser chamado de impostura, no sentido de o jornalista só poder fazer o que faz, ou seja, contribuir para a manutenção da ordem simbólica, fazendo de conta que não o faz, como se não seguisse outro princípio que não o da utilidade pública e do bem comum, da verdade e da justiça. Hipocrisia ou mau-caratismo? Nem uma coisa nem outra. Nenhum sistema pode funcionar maciça e deliberadamente com base na impostura intencional e permanente. É necessário que as pessoas acreditem no que estão fazendo e que assumam uma ideologia socialmente aceita que não pode se resumir, no caso, a proclamar cinicamente “viva o reino do dinheiro, abaixo o humanismo arcaico, vamos ficar ricos e os pobres que se danem!”, mas que consiste em acreditar, na maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja liberal, fora da qual não há salvação possível.
DEUS E O DIABO
Muito felizmente para os donos do dinheiro, é dessa forma que podem povoar os meios de comunicação que compraram, com pessoas inteligentes, competentes e sinceras, pessoalmente condicionadas a transfigurar a lei da selva do capitalismo com aquilo que chamam de “modernidade” ou “democracia de mercado”.
Mas as conclusões válidas para os meios de comunicação valem também para segmentos inteiros da estrutura social. O microcosmo jornalístico e, nesse sentido, um espaço privilegiado para a observação in vivo do que ocorre nos campos da produção e da difusão de bens simbólicos, cujo corpo profissional pertence, na sua quase totalidade, à classe média (atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação etc.).
Foi a classe média – sobretudo a nova pequena burguesia, mas não apenas ela – que, investindo a fundo nesse sistema, injetou-lhe a dose de humanidade, inteligência, imaginação, tolerância, psicologia, em suma, o suplemento de alma necessário para que pudesse passar da exploração selvagem do “como se deve” trabalho assalariado – que grassava antes ainda da Segunda Guerra Mundial – a formas aparentemente mais civilizadas e compatíveis com o aumento das aspirações democráticas.
A esse respeito pode-se dizer que a modernização do capitalismo consistiu em desenvolver métodos de “gestão dos recursos humanos” e de comunicação para camuflar os abusos patronais por meio de eufemismos e envolver psicologicamente os assalariados na sua própria exploração. Sem dúvida, tamanha colaboração resulta em diversos ganhos materiais e morais, no primeiro caso a garantia da subsistência e no segundo a sensação de uma certa importância e utilidade para seus semelhantes. O que não é pouco.
AS CRÍTICAS AO SISTEMA ESTÃO LONGE DE POR EM RISCO A LÓGICA DOMINANTE; SUSTENTAM APENAS UM LOGORRÉICO DEBATE QUE QUASE NUNCA TOCA O ESSENCIAL.
Mas acontece que, por uma dessas artimanhas objetivas de que a história está cheia, o trabalho que essas pessoas executam traz lucros maiores ao sistema e às castas feudais que o dominam, de modo que, pensando servir a Deus, servem ao diabo. Mas fazem na melhor das intenções, com a consciência tranqüila, porque quase tudo que possa pesar na consciência é automaticamente autocensurado ou transfigurado. No íntimo, eles têm, como diria Pascal, “uma vontade de crer que supera suas razões para duvidar”. Provavelmente, isso acontece porque os jornalistas dominam profissionalmente as tecnologias do fazer-ver e do fazer-saber. Daí resulta que a visão de seu próprio meio de trabalho seja mais nítida que em outras categorias da classe média, cuja postura objetiva consiste em nunca ser nem nunca fazer por completo o que elas mesmas pensam que são e fazem, numa constante auto-encenação em que procuram aumentar sua importância.
A BUSCA DA AFIRMAÇÃO
Se é verdade que nenhum jogo social pode se desenvolver sem que os atores aceitem, em parte ou totalmente, “contar-se histórias”, iludir a si mesmos e aos outros, temos de admitir que a classe média têm uma tendência especial a “fazer teatro”. Essa propensão, antes de tudo nascisista, à dramatização de sua existência está ligada ao fato de pertencerem a um espaço social intermediário entre os dois pólos, o dominador e o dominado. Todos os traços característicos da pequena burguesia resultam dessa posição ambígua entre o insatisfatório e o abundante, entre o ser e o não ser, num mundo em que o valor social se tornou diretamente proporcional ao grau de acumulação do capital em geral, e do nível econômico em particular. “Os menos aquinhoados”, como se diz pudicamente, dispõem de pouquíssimo para se preocupar em valorizar o que têm e o que são. Os mais privilegiados, ao contrário, possuem bens demais para precisar se valorizar oferecendo-se como espetáculo. Na classe média, mais do que nas outras, existir socialmente significa ser notado.
Mas essa busca interminável de auto-afirmação raramente produz resultados totalmente satisfatórios. Os pequeno burgueses (em todas as suas funções), por sua posição intermediária, geralmente são mais sensíveis à distância das posições superiores que às vantagens intrínsecas da posição ocupada. Como já notava Stendhal, “a grande aspiração é ascender à classe superior à sua, que faz de tudo para impedir sua ascenção a ela”. Nisso reside uma fonte de grande frustração e ressentimento, uma espécie de lugar propício à patologia do reconhecimento social, origem primeira de inúmeros casos de sofrimento existencial que poderiam ser reunidos sob a denominação de “síndrome de Emma Bovary e de Julien Sorel”. Sofrimento que aumenta em vez de diminuir, por ser estruturalmente programado e, portanto, refratário a qualquer terapia. Uma pesquisa sobre o jornalismo de base fornece eloqüentes exemplos desse relacionamento ambíguo, que é ao mesmo tempo deslumbrado e exasperado, amoroso e despeitado, arrogante e doloroso, dos dominadores-dominados desse entremeio social.
Temos o direito de pensar que o único meio de remediar tal situação seria a decisão clara de participarmos ativamente de uma ação coletiva de natureza política e social que virasse romper com a lógica do sistema. Tarefa difícil, que exige colocar em questão o inconsciente social da situação, isto é, tudo que foi pessoalmente no mais fundo de nós mesmos, todos os elos profundos, todas as adesões carnais por meio das quais os indivíduos “aderem” a um sistema que os engendrou e condicionou a fazer, de livre e espontânea vontade e às vezes com infinita alegria, o que espera que eles façam. Por exemplo, enfrentarem-se impiedosamente numa competição implacável por objetivos ilusórios e risíveis, cuja perseguição e conquista, no final das contas, não provam nada, salvo precisamente que se está muitíssimo bem condicionado.
Até agora, os membros da classe média, por estarem condicionados não apenas pelos meios de comunicação mas por toda a sua socialização, trataram de cultivar, com perseverança, seu sonho de ascensão social e suas esperanças de vitória pessoal num universo cujas carências, contradições e iniqüidades eles próprios são chamados a denunciar. Mas essas opiniões críticas, por se restringirem ao registro político (muitas vezes politiqueiro), e o voto “à esquerda” a que costumam estar associadas, longe de pôr em risco a lógica dominante, têm o efeito de otimizar o funcionamento de um sistema que, além de se reproduzir no essencial, pode também se vangloriar de manter, nos meios de fato, quase nunca toca o essencial.
Alain Accardo é professor de sociologia da Universidade de Bordeaux-III, co-autor de Jornalistes Précaires, Lê Mascaret, Bordeaux, 1998.
Responsabilidade Social
Dinheiro público, ação privada
Proposta de vantagens fiscais para empresas que investem no social reacende o debate sobre os Papéis do Estado e da iniciativa privada na redução das desigualdades
Felipe Polydoro
Por décadas, as empresas foram vistas como insensíveis aos graves problemas sociais do país. Essa noção mudou drasticamente nos últimos anos. Entre as grandes, são pouquíssimas aquelas que ainda não fazem investimentos sociais. As pequenas e médias não ficam muito atrás e já provaram que, nessa matéria, tamanho não é documento. Se uma proposta que vem ganhando força entre os protagonistas do terceiro setor vingar, pode ser que a iniciativa privada se sinta ainda mais estimulada a destinar recursos para a comunidade.
Trata-se de um projeto que aumenta os incentivos fiscais para o investimento social privado, bandeira de inúmeras empresas e ONGs Brasil afora. A idéia é que companhias e pessoas fisicas tenham o direito de abater do imposto de renda: pelo menos parte do valor destinado a ações sociais. Em linhas gerais, o argumento é que, ao incentivar o investimento, social, o governo finalmente colocará o combate às desigualdades como de do Estado na sociedade. Ou seja, até alguns, a privatização do investimento como desafio número um do país. E reconhecerá, na prática, que a responsabilidade pelo combate à pobreza, ao analfabetismo e a outras mazelas brasileiras já é um problema do Estado, mas também da iniciativa privada e de toda a sociedade civil.
Posta assim, a questão parece simples: bastaria transformar a intenção em regra e todos se dariam por satisfeitos. No entanto, a proposta tem um conteúdo polêmico por envolver uma discussão ideológica. Afinal, trata-se de colocar na balança o papel do Estado na sociedade. Ou seja, até que ponto ainda cabe ao setor público ser praticamente o único operador de iniciativas e ações sociais? Afinal, não é difícil admitir que, durante todo o século 20, as tentativas dos dovernos de abrandar as desigualdades sociais se mostraram ineficazes.
Privatização do social – Muitos temem que o aumento dos incentivos fiscais seja, no fundo, o início de uma transferência de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada e o terceiro setor. Ou, como preferem alguns, a privatização do investimento social. Uma espécie de nova fase da desestatização é do enxugamento da máquina pública. “Nenhum país do mundo conseguiu sair da pobreza sem ser por políticas públicas. As empresas podem ser parceiras, podem melhorar a vida de determinada parte da população, mas o alcance de suas ações sempre será pequeno”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, principal entidade de responsabilidade social do país.
Na realidade, mesmo os defensores dos incentivos não pregam o que se poderia chamar de gestão privada dos recursos públicos. Nenhum deles elege como ideal a transferência de responsabilidades, nem apresenta os empresários como altruísticos super heróis encarregados de defender os fracos e oprimidos. O que propõem é criar uma parceria entre setores públicos e privados, relação hoje marcada por “desconfiança de parte a parte”, na opinião de Grajew. E os benefícios fiscais seriam um início de aproximação. “É uma forma de universalizar a responsabilidade social”, acredita o advogado Ives Gandra Martins, um dos principais juristas brasileiros.
“Não queremos ocupar o lugar do Estado. Quem determina a política social, quem fiscaliza e quem tem condições de dar a escala de investimentos sociais demandados continua sendo o Estado”, sintetiza Leo Voigt, presidente do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as principais entidades empresariais de cunho social do país (Abrinq, Ayrton Senna, Bradesco, Kellogg, entre outros). Voigt é um dos grandes entusiastas do aumento dos benefícios fiscais. O deputado estadual gaúcho César Busatto, idealizador de um dos únicos projetos que prevê incentivos para investimento social em todo o país (veja quadro acima), mostra o outro lado da moeda: “O governo também não tem como dar conta de todo o investimento isoladamente. Até porque houve um processo de enxugamento do Estado nos últimos anos”. Portanto, o raciocínio é que nem o governo, nem a iniciativa privada e tampouco o terceiro setor têm condições de encarar a bronca sozinho – e, portanto, estaria mais do que na hora de fazer uma “corrente pra frente”.
Tartaruga e baleia – Outro forte argumento em favor dos incentivos é que, sempre que o governo colocou algo como prioridade, usou os impostos como arma. Foi assim com a agricultura, com a indústria e com a tecnologia. Recentemente, por exemplo, o governo retirou as alíquotas de importação de máquinas para a fabricação de papel imprensa como objetivo de reduzir o enorme déficit comercial deste produto. Mas o caso mais invocado é o da cultura. Graças à Lei Rouanet, a empresa que faz investimentos culturais pode abater até 4% do que deve ao Leão. Na prática, acaba deduzindo até 80% do gasto total (e, no caso de livros, 100%). “O governo dá muito mais incentivos para investimentos em cinema, teatro e cultura do que para saúde e educação, que são necessidades básicas”, cobra Rodrigo Baggio. Diretor e fundador da ONG Comitê pela Democratização da Informática (CDI). Leo Voigt, do Gife, é incisivo: “Só queremos que criança, deficiente e idoso tenham o mesmo tratamento que o patrimônio cultural, as zonas francas, as baleias e as tartarugas do Projeto Tamar”.
A defesa da via dos benefícios fiscais não termina aí. Alega-se ainda que, nos países desenvolvidos, a concessão dos incentivos é disseminada e funcionou como alavanca do terceiro setor: Em nações como França e Alemanha, 60% dos recursos das entidades sem fins lucrativos vêm dos cofres públicos, seja diretamente, seja por renúncia fiscal. No mundo todo, a média é de 40%. No Brasil, este número está abaixo de 20%.
A lógica por trás do comportamento nas nações ricas é a crença de que, em muitos casos, o investimento das ONGs e da sociedade civil é mais eficiente do que o feito pelo governo, cujo dinheiro precisa percorrer as entranhas da burocracia estatal antes de chegar ao destino final. “Os cidadãos sabem melhor que o Estado o que é importante para sua comunidade, seu bairro. E, com os incentivos, são os cidadãos que assumem a responsabilidade pelos investimentos e decidem para onde eles vão”, defende Joaquim Falcão, membro do conselho da Comunidade Solidária e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De fato, não faltam críticas ao investimento social do governo brasileiro.
Certa feita, o economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), um dos principais estudiosos brasileiros de políticas sociais, afirmou que para os recursos chegarem em quem realmente precisa seria mais fácil o governo abandonar as políticas que existem hoje, colocar todo o dinheiro em um helicóptero e jogar pela janela. Exageros à parte, um estudo do Banco Mundial (Bird) mostrou que apenas 19% do orçamento social brasileiro vai para os 20% mais miseráveis. Isso acontece por diversos motivos. O principal deles é que boa parte desse valor termina na carteira da elite. Um exemplo prático disso é o ensino superior. O montante repassado às universidades públicas, que possui status de investimento social, beneficia muito a classe média. Além disso, outra parcela significativa do dinheiro serve para arcar com os pesados custos da máquina pública. Para encerrar, há os perversos mecanismos da corrupção, que está longe de ser exclusividade brasileira.
Paradigmas - O deputado gaúcho Cesar Busatto aponta mais um aspecto geralmente ignorado nas críticas às políticas sociais de governos: as parcas informações que o Estado possui sobre a população pobre. Sabe-se que ela existe, é monstruosa, mas os cálculos são invariavelmente estimativas. Não há conhecimento exato de onde se localiza, tampouco das necessidades e dos anseios de cada bolsão de pobreza.
Em vez de ser a burocracia estatal que decide quem vai sob esta ótica, um primeiro esforço para aprimorar o investimento social do governo seria a busca por dados mais precisos e confiáveis a respeito das populações carentes. E aí é que está um dos aspectos mais relevantes desta discussão toda: se os investimentos sociais do governo já se revelaram incapazes de melhorar efetivamente a vida dos miseráveis, envolver mais a iniciativa privada é uma das soluções? Na opinião de Oded Grajew, do Instituto Ethos, primeiro é preciso aperfeiçoar as políticas públicas e fiscalizar sua execução com mais afinco, para que os recursos cheguem nas mãos de quem realmente precisa. Não que ele seja contrário à participação mais efetiva das empresas na
melhoria da vida da população carente, ressalta. Presidente da Fundação Telefônica e um dos nomes mais respeitados do terceiro setor, Sérgio Mindlin aponta uma das principais contribuições que a iniciativa privada pode dar daqui para a frente, seguindo a lógica da parceria: a de estabelecer novos paradigmas e experimentar outras metodologias que posteriormente poderão ser adotadas pelo próprio governo. "Cabe à sociedade civil fazer investimentos complementares e inovadores”, acredita Mindlin. _
Favorável aos incentivos, Mindlin acredita que, antes de criá-los, é preciso aprimorar alguns defeitos vistos em leis parecidas, como a da cultura. E aí está uma crítica bastante contundente à política dos benefícios: é preciso encontrar formas de fiscalizar melhor onde vão parar os recursos que deixam de ir para a Receita. Grajew informa, por exemplo, que a lei cultural é muitas vezes utilizada com fins essencialmente mercadológicos. Como é sabido, associar a marca da empresa à cultura traz retornos intangíveis, mas reais. Nos investimentos sociais, o retorno à imagem institucional da empresa pode ser ainda maior. Não é à toa que, sempre que podem, muitas empresas fazem questão de mostrar ao público suas ações sociais relevantes, sobretudo por meio do cada vez mais disseminado balanço social.
Se de fato houver aumento dos incentivos fiscais, essa transparência sobre onde foi posto cada centavo destinado a ações para a comunidade se torna premente. Só assim, o contribuinte e a sociedade em geral podem ter certeza do destino dado a seu dinheiro. "Será fundamental saber o que motiva a empresa a escolher determinado programa ou entidade para investir. Se é um compromisso social mesmo", reforça Marcos Fuchs, diretor-adjunto da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).
Minorias - O.k., mas se as ações sociais rendem um retorno extremamente benéfico à imagem da empresa perante o público, a troco de que o governo vai pagar a conta, ou pelo menos parte dela? Em geral, os defensores dos incentivos alegam que o objetivo não é ratear os custos, mas motivar as empresas a aumentar cada vez mais o bolo que vai para o sociale abrir os olhos daquelas que ainda não gastam nem um centavo. Tanto que as propostas jamais prevêem abatimento total do gastos. Mas esse argumento se enfraquece um pouco quando se observa que a imensa maioria das empresas que poderia utilizar os benefícios fiscais que existem hoje não o faz. As companhias que medem os resultados a partir do lucro real podem destinar até 1% do imposto devido aos fundos"1llunicipais da criança e do adolescente.
De acordo com a pesquisa Ação Social das Empresas, recém-divulgada pelo Ipea, apenas 6% delas se aproveitam dos incentivos existentes. Na Região Sul, este percentual cai para mísero 1%. "A motivação das empresas é principalmente humanitária ou por pressão das comunidades vizinhas", informa Anna Maria Peliano, coordenadora da pesquisa. "Não é necessário o incentivo para mobilizar as empresas. Elas vão continuar investindo, e cada vez mais, independentemente disso", aposta Ana Maria Wilheim, superintendente da Fundação Abrinq. Ela não é contra novos estímulos fiscais, mas acha que o mais importante e pragmático neste momento é melhorar os incentivos já existentes. Apenas 3% das empresas brasileiras fecham as contas a partir do lucro real (a maioria é presumido ou Simples) e, portanto, apenas uma minoria pode abater do imposto o valor destinado aos fundos da criança e do adolescente - o que explica, em parte, o resultado da pesquisa do Ipea. Outro ponto crítico envolve as pessoas fisicas. Todas têm o direito de destinar até 6% do imposto devido aos mesmos fundos. Detalhe: para isso, precisam avisar o governo até o final do ano de exercício. O problema é que quase todo o mundo começa a pensar no Leão só perto de abril, época de mandar a declaração. Se o contribuinte resolve doar a essas alturas do campeonato, aí é tarde demais.
Boa notícia: existe um projeto de lei no Congresso atualmente para corrigir isso. A perspectiva é de que seja aprovado ainda neste ano. Eduardo Szazi, consultor jurídico do Gife, levanta outra polêmica que afugenta as pessoas interessadas em doar parte dos imostos: “Em geral, a receita coloca na malha fina os contribuintes que destinam parte do imposto para os fundos”.
Inimigos - A propósito, a Receita é a grande adversária dos defensores dos incentivos. Para que virem regra, é preciso que os beneficios sejam aprovados no Congresso. E, como o assunto envolve o Orçamento, é recomendável que o projeto de lei parta do próprio executivo. A grande aliada é a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do Comunidade Solidária, que se manifestou publicamente a favor dos incentivos. Já Everardo Maciel, secretário da Receita, não quer nem ouvir falar no assunto. Por tudo isso, é pouco provável que saia alguma lei ainda neste ano. Até porque, depois de todos os esforços do governo para acertar as contas públicas, ninguém parece muito interessado em discutir medidas que possam cortar a arrecadação. Mas isso
TABELA 1
Motivo para a ação
O que leva as empresas a fazer ações sociais (em %)
Atender os motivos humanitários – 76%
Atender as comunidades próximas ao local da empresa – 38%
Atender pedidos de outras entidades (governamentais ou comunitárias) – 33%
Melhorar a imagem da empresa – 26%
Aumentar a satisfação dos empregados da empresa – 25%
Nomes aos bois
Um erro muito comum nestes tempos em que as empresas se preocupam cada vez mais com a comunidade é confundir responsabilidade social com investimento social privado. Apesar de os dois conceitos terem relação, não são a mesma coisa. Responsabilidade social está ligada à gestão da empresa, ou seja, aos valores que norteiam todas as suas relações: com funcionários, fornecedores, clientes, investidores, governo, meio ambiente e a comunidade. A recomendação é que, em todos os casos, a empresa seja ética e responsável. “Não adianta realizar ações sociais e pagar mal ou atrasae muito o salário dos funcionários. Vai parecer propaganda enganosa”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos. Já os investimentos sociais privados, um dos pilares da responsabilidade social, dizem respeito às iniciativas que beneficiam apenas a comunidade, e não funcionários, acionistas e outros públicos internos. Como explica Leo Voigt, presidente do Gife, “na responsabilidade social, o interesse é privado. Nos investimentos sociais, é público”.
Onde a teoria pode virar prática
Apesar de todas as discussões que o assunto vem suscitando, só existe um projeto de lei em todo o país que prevê o aumento de incentivos fiscais para os investimentos sociais privados. Trata-se de uma proposta da Assembléia do Rio Grande do Sul pata permitir às empresas a dedução de até 75% do que investiram em ações sociais sobre o ICMS que têm a pagar. A isenção, nesse projeto, fica limitada a até 20% do imposto total a ser pago pela empresa. Quanto maior for a organização, menor o limite para redução do ICMS. A proposta segue os moldes da lei estadual de incentivo à cultura (LIC). “Não vejo problema nenhum em usar o ICMS para incentivar o investimento social. Seria uma incongruência tremenda ter uma lei para a cultura e nenhuma que beneficiasse socialmente a comunidade”, defende o deputado estadual César Busato, um dos idealizadores do projeto. Na realidade, havia dois projetos distintos, um proposto por Busatto, outro pela federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que foram reunidos em um só. Como envolve o orçamento do Estado, os deputados decidiram transformar os textos em projeto da Assembléia. “O ideal mesmo era que partisse do próprio executivo”, entende Maurício Vian, consultor da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
Neste momento, o presidente da Assembléia, Sérgio Zambiasi, está empenhado em reunir assinaturas de todos os deputados – só faltam as da bancada do PT, partido do governo.
Proposta de vantagens fiscais para empresas que investem no social reacende o debate sobre os Papéis do Estado e da iniciativa privada na redução das desigualdades
Felipe Polydoro
Por décadas, as empresas foram vistas como insensíveis aos graves problemas sociais do país. Essa noção mudou drasticamente nos últimos anos. Entre as grandes, são pouquíssimas aquelas que ainda não fazem investimentos sociais. As pequenas e médias não ficam muito atrás e já provaram que, nessa matéria, tamanho não é documento. Se uma proposta que vem ganhando força entre os protagonistas do terceiro setor vingar, pode ser que a iniciativa privada se sinta ainda mais estimulada a destinar recursos para a comunidade.
Trata-se de um projeto que aumenta os incentivos fiscais para o investimento social privado, bandeira de inúmeras empresas e ONGs Brasil afora. A idéia é que companhias e pessoas fisicas tenham o direito de abater do imposto de renda: pelo menos parte do valor destinado a ações sociais. Em linhas gerais, o argumento é que, ao incentivar o investimento, social, o governo finalmente colocará o combate às desigualdades como de do Estado na sociedade. Ou seja, até alguns, a privatização do investimento como desafio número um do país. E reconhecerá, na prática, que a responsabilidade pelo combate à pobreza, ao analfabetismo e a outras mazelas brasileiras já é um problema do Estado, mas também da iniciativa privada e de toda a sociedade civil.
Posta assim, a questão parece simples: bastaria transformar a intenção em regra e todos se dariam por satisfeitos. No entanto, a proposta tem um conteúdo polêmico por envolver uma discussão ideológica. Afinal, trata-se de colocar na balança o papel do Estado na sociedade. Ou seja, até que ponto ainda cabe ao setor público ser praticamente o único operador de iniciativas e ações sociais? Afinal, não é difícil admitir que, durante todo o século 20, as tentativas dos dovernos de abrandar as desigualdades sociais se mostraram ineficazes.
Privatização do social – Muitos temem que o aumento dos incentivos fiscais seja, no fundo, o início de uma transferência de responsabilidade do Estado para a iniciativa privada e o terceiro setor. Ou, como preferem alguns, a privatização do investimento social. Uma espécie de nova fase da desestatização é do enxugamento da máquina pública. “Nenhum país do mundo conseguiu sair da pobreza sem ser por políticas públicas. As empresas podem ser parceiras, podem melhorar a vida de determinada parte da população, mas o alcance de suas ações sempre será pequeno”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos, principal entidade de responsabilidade social do país.
Na realidade, mesmo os defensores dos incentivos não pregam o que se poderia chamar de gestão privada dos recursos públicos. Nenhum deles elege como ideal a transferência de responsabilidades, nem apresenta os empresários como altruísticos super heróis encarregados de defender os fracos e oprimidos. O que propõem é criar uma parceria entre setores públicos e privados, relação hoje marcada por “desconfiança de parte a parte”, na opinião de Grajew. E os benefícios fiscais seriam um início de aproximação. “É uma forma de universalizar a responsabilidade social”, acredita o advogado Ives Gandra Martins, um dos principais juristas brasileiros.
“Não queremos ocupar o lugar do Estado. Quem determina a política social, quem fiscaliza e quem tem condições de dar a escala de investimentos sociais demandados continua sendo o Estado”, sintetiza Leo Voigt, presidente do Grupo de Instituições, Fundações e Empresas (Gife), que reúne as principais entidades empresariais de cunho social do país (Abrinq, Ayrton Senna, Bradesco, Kellogg, entre outros). Voigt é um dos grandes entusiastas do aumento dos benefícios fiscais. O deputado estadual gaúcho César Busatto, idealizador de um dos únicos projetos que prevê incentivos para investimento social em todo o país (veja quadro acima), mostra o outro lado da moeda: “O governo também não tem como dar conta de todo o investimento isoladamente. Até porque houve um processo de enxugamento do Estado nos últimos anos”. Portanto, o raciocínio é que nem o governo, nem a iniciativa privada e tampouco o terceiro setor têm condições de encarar a bronca sozinho – e, portanto, estaria mais do que na hora de fazer uma “corrente pra frente”.
Tartaruga e baleia – Outro forte argumento em favor dos incentivos é que, sempre que o governo colocou algo como prioridade, usou os impostos como arma. Foi assim com a agricultura, com a indústria e com a tecnologia. Recentemente, por exemplo, o governo retirou as alíquotas de importação de máquinas para a fabricação de papel imprensa como objetivo de reduzir o enorme déficit comercial deste produto. Mas o caso mais invocado é o da cultura. Graças à Lei Rouanet, a empresa que faz investimentos culturais pode abater até 4% do que deve ao Leão. Na prática, acaba deduzindo até 80% do gasto total (e, no caso de livros, 100%). “O governo dá muito mais incentivos para investimentos em cinema, teatro e cultura do que para saúde e educação, que são necessidades básicas”, cobra Rodrigo Baggio. Diretor e fundador da ONG Comitê pela Democratização da Informática (CDI). Leo Voigt, do Gife, é incisivo: “Só queremos que criança, deficiente e idoso tenham o mesmo tratamento que o patrimônio cultural, as zonas francas, as baleias e as tartarugas do Projeto Tamar”.
A defesa da via dos benefícios fiscais não termina aí. Alega-se ainda que, nos países desenvolvidos, a concessão dos incentivos é disseminada e funcionou como alavanca do terceiro setor: Em nações como França e Alemanha, 60% dos recursos das entidades sem fins lucrativos vêm dos cofres públicos, seja diretamente, seja por renúncia fiscal. No mundo todo, a média é de 40%. No Brasil, este número está abaixo de 20%.
A lógica por trás do comportamento nas nações ricas é a crença de que, em muitos casos, o investimento das ONGs e da sociedade civil é mais eficiente do que o feito pelo governo, cujo dinheiro precisa percorrer as entranhas da burocracia estatal antes de chegar ao destino final. “Os cidadãos sabem melhor que o Estado o que é importante para sua comunidade, seu bairro. E, com os incentivos, são os cidadãos que assumem a responsabilidade pelos investimentos e decidem para onde eles vão”, defende Joaquim Falcão, membro do conselho da Comunidade Solidária e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De fato, não faltam críticas ao investimento social do governo brasileiro.
Certa feita, o economista Ricardo Paes de Barros, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), um dos principais estudiosos brasileiros de políticas sociais, afirmou que para os recursos chegarem em quem realmente precisa seria mais fácil o governo abandonar as políticas que existem hoje, colocar todo o dinheiro em um helicóptero e jogar pela janela. Exageros à parte, um estudo do Banco Mundial (Bird) mostrou que apenas 19% do orçamento social brasileiro vai para os 20% mais miseráveis. Isso acontece por diversos motivos. O principal deles é que boa parte desse valor termina na carteira da elite. Um exemplo prático disso é o ensino superior. O montante repassado às universidades públicas, que possui status de investimento social, beneficia muito a classe média. Além disso, outra parcela significativa do dinheiro serve para arcar com os pesados custos da máquina pública. Para encerrar, há os perversos mecanismos da corrupção, que está longe de ser exclusividade brasileira.
Paradigmas - O deputado gaúcho Cesar Busatto aponta mais um aspecto geralmente ignorado nas críticas às políticas sociais de governos: as parcas informações que o Estado possui sobre a população pobre. Sabe-se que ela existe, é monstruosa, mas os cálculos são invariavelmente estimativas. Não há conhecimento exato de onde se localiza, tampouco das necessidades e dos anseios de cada bolsão de pobreza.
Em vez de ser a burocracia estatal que decide quem vai sob esta ótica, um primeiro esforço para aprimorar o investimento social do governo seria a busca por dados mais precisos e confiáveis a respeito das populações carentes. E aí é que está um dos aspectos mais relevantes desta discussão toda: se os investimentos sociais do governo já se revelaram incapazes de melhorar efetivamente a vida dos miseráveis, envolver mais a iniciativa privada é uma das soluções? Na opinião de Oded Grajew, do Instituto Ethos, primeiro é preciso aperfeiçoar as políticas públicas e fiscalizar sua execução com mais afinco, para que os recursos cheguem nas mãos de quem realmente precisa. Não que ele seja contrário à participação mais efetiva das empresas na
melhoria da vida da população carente, ressalta. Presidente da Fundação Telefônica e um dos nomes mais respeitados do terceiro setor, Sérgio Mindlin aponta uma das principais contribuições que a iniciativa privada pode dar daqui para a frente, seguindo a lógica da parceria: a de estabelecer novos paradigmas e experimentar outras metodologias que posteriormente poderão ser adotadas pelo próprio governo. "Cabe à sociedade civil fazer investimentos complementares e inovadores”, acredita Mindlin. _
Favorável aos incentivos, Mindlin acredita que, antes de criá-los, é preciso aprimorar alguns defeitos vistos em leis parecidas, como a da cultura. E aí está uma crítica bastante contundente à política dos benefícios: é preciso encontrar formas de fiscalizar melhor onde vão parar os recursos que deixam de ir para a Receita. Grajew informa, por exemplo, que a lei cultural é muitas vezes utilizada com fins essencialmente mercadológicos. Como é sabido, associar a marca da empresa à cultura traz retornos intangíveis, mas reais. Nos investimentos sociais, o retorno à imagem institucional da empresa pode ser ainda maior. Não é à toa que, sempre que podem, muitas empresas fazem questão de mostrar ao público suas ações sociais relevantes, sobretudo por meio do cada vez mais disseminado balanço social.
Se de fato houver aumento dos incentivos fiscais, essa transparência sobre onde foi posto cada centavo destinado a ações para a comunidade se torna premente. Só assim, o contribuinte e a sociedade em geral podem ter certeza do destino dado a seu dinheiro. "Será fundamental saber o que motiva a empresa a escolher determinado programa ou entidade para investir. Se é um compromisso social mesmo", reforça Marcos Fuchs, diretor-adjunto da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi).
Minorias - O.k., mas se as ações sociais rendem um retorno extremamente benéfico à imagem da empresa perante o público, a troco de que o governo vai pagar a conta, ou pelo menos parte dela? Em geral, os defensores dos incentivos alegam que o objetivo não é ratear os custos, mas motivar as empresas a aumentar cada vez mais o bolo que vai para o sociale abrir os olhos daquelas que ainda não gastam nem um centavo. Tanto que as propostas jamais prevêem abatimento total do gastos. Mas esse argumento se enfraquece um pouco quando se observa que a imensa maioria das empresas que poderia utilizar os benefícios fiscais que existem hoje não o faz. As companhias que medem os resultados a partir do lucro real podem destinar até 1% do imposto devido aos fundos"1llunicipais da criança e do adolescente.
De acordo com a pesquisa Ação Social das Empresas, recém-divulgada pelo Ipea, apenas 6% delas se aproveitam dos incentivos existentes. Na Região Sul, este percentual cai para mísero 1%. "A motivação das empresas é principalmente humanitária ou por pressão das comunidades vizinhas", informa Anna Maria Peliano, coordenadora da pesquisa. "Não é necessário o incentivo para mobilizar as empresas. Elas vão continuar investindo, e cada vez mais, independentemente disso", aposta Ana Maria Wilheim, superintendente da Fundação Abrinq. Ela não é contra novos estímulos fiscais, mas acha que o mais importante e pragmático neste momento é melhorar os incentivos já existentes. Apenas 3% das empresas brasileiras fecham as contas a partir do lucro real (a maioria é presumido ou Simples) e, portanto, apenas uma minoria pode abater do imposto o valor destinado aos fundos da criança e do adolescente - o que explica, em parte, o resultado da pesquisa do Ipea. Outro ponto crítico envolve as pessoas fisicas. Todas têm o direito de destinar até 6% do imposto devido aos mesmos fundos. Detalhe: para isso, precisam avisar o governo até o final do ano de exercício. O problema é que quase todo o mundo começa a pensar no Leão só perto de abril, época de mandar a declaração. Se o contribuinte resolve doar a essas alturas do campeonato, aí é tarde demais.
Boa notícia: existe um projeto de lei no Congresso atualmente para corrigir isso. A perspectiva é de que seja aprovado ainda neste ano. Eduardo Szazi, consultor jurídico do Gife, levanta outra polêmica que afugenta as pessoas interessadas em doar parte dos imostos: “Em geral, a receita coloca na malha fina os contribuintes que destinam parte do imposto para os fundos”.
Inimigos - A propósito, a Receita é a grande adversária dos defensores dos incentivos. Para que virem regra, é preciso que os beneficios sejam aprovados no Congresso. E, como o assunto envolve o Orçamento, é recomendável que o projeto de lei parta do próprio executivo. A grande aliada é a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do Comunidade Solidária, que se manifestou publicamente a favor dos incentivos. Já Everardo Maciel, secretário da Receita, não quer nem ouvir falar no assunto. Por tudo isso, é pouco provável que saia alguma lei ainda neste ano. Até porque, depois de todos os esforços do governo para acertar as contas públicas, ninguém parece muito interessado em discutir medidas que possam cortar a arrecadação. Mas isso
TABELA 1
Motivo para a ação
O que leva as empresas a fazer ações sociais (em %)
Atender os motivos humanitários – 76%
Atender as comunidades próximas ao local da empresa – 38%
Atender pedidos de outras entidades (governamentais ou comunitárias) – 33%
Melhorar a imagem da empresa – 26%
Aumentar a satisfação dos empregados da empresa – 25%
Nomes aos bois
Um erro muito comum nestes tempos em que as empresas se preocupam cada vez mais com a comunidade é confundir responsabilidade social com investimento social privado. Apesar de os dois conceitos terem relação, não são a mesma coisa. Responsabilidade social está ligada à gestão da empresa, ou seja, aos valores que norteiam todas as suas relações: com funcionários, fornecedores, clientes, investidores, governo, meio ambiente e a comunidade. A recomendação é que, em todos os casos, a empresa seja ética e responsável. “Não adianta realizar ações sociais e pagar mal ou atrasae muito o salário dos funcionários. Vai parecer propaganda enganosa”, defende Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos. Já os investimentos sociais privados, um dos pilares da responsabilidade social, dizem respeito às iniciativas que beneficiam apenas a comunidade, e não funcionários, acionistas e outros públicos internos. Como explica Leo Voigt, presidente do Gife, “na responsabilidade social, o interesse é privado. Nos investimentos sociais, é público”.
Onde a teoria pode virar prática
Apesar de todas as discussões que o assunto vem suscitando, só existe um projeto de lei em todo o país que prevê o aumento de incentivos fiscais para os investimentos sociais privados. Trata-se de uma proposta da Assembléia do Rio Grande do Sul pata permitir às empresas a dedução de até 75% do que investiram em ações sociais sobre o ICMS que têm a pagar. A isenção, nesse projeto, fica limitada a até 20% do imposto total a ser pago pela empresa. Quanto maior for a organização, menor o limite para redução do ICMS. A proposta segue os moldes da lei estadual de incentivo à cultura (LIC). “Não vejo problema nenhum em usar o ICMS para incentivar o investimento social. Seria uma incongruência tremenda ter uma lei para a cultura e nenhuma que beneficiasse socialmente a comunidade”, defende o deputado estadual César Busato, um dos idealizadores do projeto. Na realidade, havia dois projetos distintos, um proposto por Busatto, outro pela federação das Associações Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que foram reunidos em um só. Como envolve o orçamento do Estado, os deputados decidiram transformar os textos em projeto da Assembléia. “O ideal mesmo era que partisse do próprio executivo”, entende Maurício Vian, consultor da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho.
Neste momento, o presidente da Assembléia, Sérgio Zambiasi, está empenhado em reunir assinaturas de todos os deputados – só faltam as da bancada do PT, partido do governo.
Subscribe to:
Posts (Atom)